Goldman: ”No vilarejo onde nossos avós nasceram, meu primo e eu caminhávamos”
No vilarejo onde nossos avós nasceram, meu primo e eu caminhávamos e ele tirava fotos. De repente, um senhor se aproximou de maneira agressiva. Botava a mão no bolso da calça como alguém que ameaça sacar uma arma
No mês passado eu e meu primo Edú resolvemos cumprir um velho sonho comum: conhecer Sokyryany, vilarejo na Ucrânia onde nossos avós nasceram e viveram até meados da década de 1920, quando emigraram para o Rio de Janeiro. Até o fim da Primeira Guerra Mundial, a região onde fica Sokyryany se chamava Bessarábia e era uma província na periferia do Império Russo – uma terra pobre, desolada e cinzenta, para onde a Imperatriz Catarina, a Grande, expulsou os judeus, em 1791. É lá que ficava a fictícia Anatevka, onde se passa a história do musical O violinista no telhado.
A Bessarábia foi palco das maiores tragédias da história da humanidade: Primeira Guerra Mundial, guerra civil soviética, morte em massa causada pela fome sob a ditadura stalinista e Segunda Guerra Mundial. Pode ser que exista, mas no momento não consigo imaginar um lugar mais fodido. No voo para Kiev nos perguntávamos o que esperávamos encontrar por lá. Não era nada de específico ou tangível. Queríamos encontrar algum vestígio do mundo desaparecido dos nossos avós, algo que pudesse explicar um pouco sobre quem somos. De concreto, só imaginava ir a um mundo com cheiro de pepino em conserva misturado com cheiro de canja de frango e livros velhos. O mesmo cheiro da casa dos meus avós.
(Abro um parêntese para dizer que a Ucrânia tem a maior concentração de mulheres gostosas do mundo. Pode-se enlouquecer andando pelas ruas de Kiev, lotadas de lindas loiras altas, magras, mas surpreendentemente curvilíneas! Foi com toda razão que os Beatles cantaram “Well, the Ukraine girls really knock me out” na canção “Back in the USSR”.)
Foram sete horas de viagem de Kiev até Sokyryany, atravessando plantações de repolho e fábricas soviéticas abandonadas que lembravam Chernobyl. Nos perdemos tentando em vão decifrar placas em alfabeto cirílico e nos confundindo com as indicações de camponeses mal-humorados com a expressão triste de quem passou a vida carregando a cortina de ferro nas costas.
Chegamos à tarde no que parecia ser a praça principal do vilarejo. Os habitantes pareciam confusos. Hesitavam em nos cumprimentar, nos olhando de forma quase hostil, querendo entender o que estrangeiros podiam querer ali. Mas, caminhando pelas ruas, nos distraímos reconhecendo as casinhas de madeira já vistas em álbuns de fotografia. As velhinhas que caminhavam com lenço na cabeça pareciam nossas avós. Meu primo começou a tirar fotos.
De repente, um senhor se aproximou de forma agressiva. Com ar de colaborador nazista, começou a agarrar a câmera do meu primo. Ele gritava, mas não entendíamos o que queria. Botava a mão no bolso da calça como alguém que ameaça sacar uma arma. Uma pequena multidão se formou em volta de nós. Olhavam a cena com indiferente curiosidade. Queríamos reagir, mas sentimos que, se déssemos porrada no maluco, podíamos ser linchados. Em nossas cabeças, mil medos atávicos foram evocados. Nossos avós saíram de lá porque foram perseguidos. Décadas depois, na Segunda Guerra, os judeus de Sokyryany foram exterminados pelos nazistas, com a ativa colaboração da população local. Minhas pernas tremiam.
Medo do outro
Perdemos a noção do tempo, mas acho que o maluco ficou uns 15 minutos berrando, atracado com o meu primo. Finalmente um senhor engravatado interveio e começou a discutir com ele. Aproveitamos para fugir de lá. Agora entendo que o encontro com o maluco e a multidão foi a epifania que procurávamos na Bessarábia. Apelidamos o incidente de mini-pogrom. É claro que aquilo não foi uma manifestação de antissemitismo – acredito que ninguém ali desconfiava que éramos judeus nostálgicos. Mas foi uma manifestação do medo ancestral que aquela gente sofrida tem do outro. Nada temo mais do que esse medo.
Voltamos abalados para Kiev numa noite gelada. Atravessando novamente aqueles intermináveis campos de repolho, senti um amor descomunal pelo Brasil, pelo calor da gente e da terra que deu boas-vindas a meus avós e que, com todos seus defeitos, me deixa sentir absolutamente em casa.
*HENRIQUE GOLDMAN, 51, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br