O sobrevivente nunca foi o mais forte ou o mais inteligente nos grupos humanos que viveram limites, mas aquele que melhor se adaptou às transformações, aquele que mais mudou para, paradoxalmente, ser ele mesmo.
Às vezes acordo na madrugada pensando no passado e fico quase morto de vergonha da pessoa nociva, estúpida e ignorante que fui. E fico aqui, com meu roupão sem botões, tentando descobrir em que momento da vida criei minha capacidade de auto-crítica. Porque se muitos foram os motivos para que eu desenvolvesse um comportamento ético e moral, a capacidade de me enxergar foi a principal ferramenta. Quando foi, em que momento isso aconteceu? Fico tentando recuperar na memória, sem sucesso. E foi o que de melhor aconteceu em minha história de vida.
Lembro momentos de infinita mágoa comigo mesmo por haver me conduzido de modo tão vergonhoso, tão humilhante. Sinto-me ainda sufocado pela tristeza ao trazer à mente o momento em que minha mãe foi me visitar na prisão, depois que fugi e fui recapturado. Eu havia conseguido ser o primeiro colocado no vestibular da PUC/SP e ganhara o maior prêmio de minha vida. Fora autorizado a assistir as aulas na faculdade, mesmo estando preso e condenado a trocentos anos de prisão. Fui fraco, não aguentei a pressão e depois de alguns meses de frequência, fugi. Não demorou mais que dias para que fosse baleado e recapturado. Ao me evadir, tive que encarar minha mãe e dizer a ela que havia fugido. A dor, a decepção que vi estampada em seus olhos acabou comigo. Movida pelo sofrimento, ela me disse que não fosse preso porque ela não iria mais me visitar. Respondi que só seria preso morto. Tentei; armei o maior tiroteio no momento da recaptura e fui baleado, mas não me mataram. Escrevi da prisão só para que ela soubesse que eu estava vivo, não esperava que me perdoasse. Estava consciente de que não merecia. Mas ela veio e eu não sabia onde enfiava a cara quando a vi subindo as escadas da prisão. A vergonha era tamanha que se abrisse um buraco no chão, eu entraria nele naquela hora. E ela veio sorridente, sem censuras, me abraçou, beijou e me fez sentir, novamente, seu menino. Amar, entendi então, era não ter que perdoar. Meu coração se expandiu e eu a amei absolutamente.
Dói ainda recordar, por exemplo, quando recebi minha ex-esposa na Casa de Detenção para me visitar, com meu filho Renato, ainda com 40 dias de vida, nos braços. Quando ela me passou aquele pacotinho azul nos braços quase desfaleci. Encostei na muralha e minhas pernas amoleceram ao olhar aquele rostinho vermelho. Quanta vergonha, quanta dor...
Causar dor nos seres que mais amava no mundo, transformá-los em minhas maiores vítimas, foi a maior vergonha de minha vida. E creio que foi nesses momentos cruciais que fui construindo a pessoa que sou hoje. Nem de morrer tenho medo. Sim, sou feito de carne e ossos e temo a dor que a morte pode me causar. Mas o meu maior medo, o que me aperta no peito, é vivenciar novamente a vergonha que já protagonizei. Sei que nada é diferente do que tenho feito de mim mesmo; não existe zona de conforto, estou sempre atento ao meu comportamento. Olho-me ao fundo e sempre me surpreendo ao perceber que o fundo de mim esta me olhando também, atento.
Talvez o contrário de vergonha seja orgulho; sucesso ou fracasso são mentiras que não dou atenção. Recente, meu filho começou a namorar uma garota na faculdade, e esta, no começo do ano, mostrou a ele a lista de livros pedidos pelo curso que ela esta matriculada. Foi uma surpresa para ele quando viu que meu primeiro livro estava entre os livros listados. Com orgulho, disse à garota que aquele livro fora escrito pelo seu pai. Quando ele me contou, algo de muito bom abriu um sorriso em meu rosto. Nos lançamentos de meus livros, nas críticas elogiosas a meus textos e na análise que as pessoas fazem a respeito de meu comportamento atual, estou conseguindo construir orgulho de mim nas pessoas que amo. É nisso que encontro a minha satisfação e motivação de viver.
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Luiz Mendes
14/05/2015.