Por Redação
em 21 de setembro de 2005
Caro Serginho Mallandro,
Meu camarada, tudo em cima? Na coluna passada eu mandei uma carta aberta para o Paulo Lima e tomei gosto. Me amarrei. Então agora resolvi aproveitar este espaço e escrever para umas pessoas. Não é maneiro? Nem me pergunte porque eu escolhi você para a primeira carta. Eu não sei. A gente nem se conhece. Eu só lembro, e bem, da primeira, da única vez em que te vi pessoalmente. Foi em Cabo Frio, num baile de carnaval.
Eu estava conversando com uma amiga e você apareceu de sopetão. Você estava com doze companheiros. Vocês fizeram uma roda. E jogaram minha amiga para dentro dela. E começaram a gritar: ‘Pega ela, Peru, pega ela, Peru!’. Eu fiquei só olhando. Não porque seus doze companheiros fossem lutadores de jiu-jitsu, imagine. Fiquei olhando porque, confesso, a princípio achei a performance até engraçada. E não consegui enxergar a lágrima que corria pelo olho direito da minha amiga.
Isso tem milênios, brother. Eu tinha dezenove anos. E você? Um pouco mais, um pouco menos? Desde então fiquei fascinado pela sua figura. Teu apelo popular. Tua malandragem redundante. Tua esperteza hiperrealista. E olha que ainda não havia para mim a tua mais completa tradução. Foi só depois que você estourou nacionalmente, em cima daquele refrão revelador, ‘vem meu amor, vem fazer glu-glu, mon amour’, que eu entendi melhor que um dos temas fundamentais da tua obra é a tessitura de relações epistemológicas entre o órgão masculino e a ave natalina. A partir daí, só aumentou o meu fascínio pelo teu carioquismo ululante. Aliás, sabe que eu sou apaixonado pela tua cidade natal? Estou falando sério. Morei aí muitos anos. Alguns dos meus melhores amigos moram aí. São pessoas que eu adoro, apesar deles terem personalidades bem diferentes da tua. Sinto uma falta profunda da convivência diária que tinha com eles. E da riqueza que é dividir a vida entre duas cidades tão diversas.
Gosto de pensar na essência destes nossos dois pólos. E eu não estou falando daquele clichê que contrapõe uma metrópole de trabalho&noite a um balneário solar&indolente. São Paulo, na verdade, é uma cidade de interior. É a maior Pirassununga do Hemisfério Sul. É cosmopolita, mas, paradoxalmente, é de um cosmopolitismo interiorano, feito de gente do interior, do interior da Itália, interior do Líbano, interior do Japão, interior do próprio Brasil. Gosto disso. São Paulo é também uma cidade de interiores. As pessoas vivem sempre dentro de alguma coisa. Dentro do carro, do restaurante, do cinema. Paulista é assim: a cidade em que a gente vive, a gente vive evitando. Não gosto disso.
Alegria, alegria
O Rio é o oposto. Além de ser uma pós-corte, em que figuras da TV substituíram condes e barões, a ‘maravilhosa’ é uma cidade de exteriores. De aparências. De extroversões extremas. E ai de quem aparece tímido ou triste! Lembro que logo que eu mudei para o Rio, uma amiga me ligou e quando ela perguntou ‘tudo bem?’, eu cometi o pecado de responder ‘mais ou menos, eu tô meio deprimido hoje’. Uma amiga paulista faria uma voz bem fofa, compreensivinha, e diria ‘puxa, é mesmo?’. Com a amiga carioca, sucedeu um pequeno silêncio constrangedor e logo uma desculpa rápida para desligar. Minha confissão carente tinha soado como sintoma de alguma lepra transmissível por fibra ótica. Agora, brother, quer saber? Foi até bom. Batismo de fogo. Não defendo esta chacina da melancolia, este estupro da introversão que às vezes rola no Rio. Mas além de ser paulista, eu estudei numa escola francesa. Passaram anos tentando me fazer aprender que ‘trágico’ é igual a ‘profundo’ e que, na cultura, quase tudo que é bom é triste. No Rio isto não cola. Os anos de praia me ensinaram que a alegria tem uma dimensão abissal.
Então é isso, meu camarada. Vamos combinar. São Paulo e Rio são cidades quase opostas. Talvez não tão opostas quanto nós dois. Talvez complementares. Que a polaridade que as une e separa continue sendo uma das fontes geradoras da original e inesgotável energia do Brasil. Glu-glu pra você.
*Carlos Nader, 37, homem de mídia, prefere não fazer glu-glu. Seu e-mail: carlos_nader@hotmail.com
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