Trip foi até o sul da Inglaterra para ver de perto o primeiro recife artificial da Europa
Trip foi até o sul da Inglaterra para ver de perto o primeiro recife artificial da Europa, feito com sacos de areia, e conferir como o projeto impulsionou a cultura de surf local
É difícil ver da areia o que atrai tantos surfistas até aqui, mas o fato é que nos últimos meses eles chegaram com força. Estou em Boscombe, no sul da Inglaterra, e apesar do vento gelado que sopra no outono inglês a praia está movimentada por um vaivém de pessoas carregando pranchas debaixo dos braços. Algumas estão interessadas em surfar as ondas pequenas, lentas e gordas que quebram bem perto da areia. Mas o que colocou de vez esse lugar no mapa do surf e atraiu curiosos é uma onda bem mais poderosa, que se forma um pouco distante da costa. Pra ser mais exato, 250 metros mar adentro. Lá é outra história. É preciso remar para ver de perto a parede de água que cresce nos dias de bom swell sobre o primeiro recife artificial para surf em toda a Europa – há outros na Índia e na Austrália. Uma engenhoca humana feita de sacos de areia que turbinou a cultura surf na região banhada pela fria água do canal da Mancha. O recife é artificial, mas a onda é verdadeira.
A reportagem da Trip foi até Boscombe um ano depois da inauguração do recife. Tempo suficiente para encontrar um bar chamado Urban Reef, um restaurante Reef Encounter e um condomínio de flats The Reef. Sinal de que não foram só os surfistas que aproveitaram a onda, apesar de eles terem sido os principais beneficiados. “Há um novo surf club chamado Boscombe Boardriders que não existiria se não fosse pelo reef. E há também um campeonato de bodyboarders que acontece exclusivamente na onda formada ali. O recife teve um impacto muito positivo na cena de surf daqui.” Palavras do surfista local Paul Humber, inglês nato que se gaba de ter viajado o mundo todo surfando para elogiar com propriedade o que agora tem no quintal de casa. “As opiniões variam bastante, mas aqueles que gostam de surfar uma onda desafiadora estão amando.”
Nas palavras dos surfistas, é uma onda de direita intensa, íngreme e rápida
Desafiadora é a palavra certa para descrever a ondulação. Não à toa uma placa na entrada da praia dá o recado: “Reef is only for experienced surfers”. Resumindo em português claro: iniciantes não são bem-vindos. Nas palavras dos próprios surfistas é uma onda de direita intensa, íngreme e rápida. Quando ela começa a se formar, é possível ver os sacos de areia no fundo do mar – o que mete medo em muita gente na hora de dropar. Para Paul, era exatamente o que faltava por ali. “Nós precisávamos de algo para quem não quer mais surfar aquela droga que quebra na praia, algo para quem está procurando uma onda um pouco mais poderosa para progredir no surf.” Talvez pela dificuldade, surfar no recife nunca foi unanimidade em Boscombe. O coro das críticas esbraveja que, em dia de swell bom, a onda é muito perigosa. E em dia de ondulação ruim ela simplesmente não existe. Desavenças à parte, ninguém discute que a repercussão na mídia sobre o reef atraiu multidões de surfistas para Boscombe.
Shaun Taylor, dono da maior surf shop da área, agradece. Encostado em uma fileira de pranchas e ao lado de uma enorme pilha de longjohns velhos, Shaun conta que abriu sua loja quando ouviu os primeiros rumores sobre o tal recife artificial que criaria ondas perfeitas em Boscombe. Detalhe: isso foi há dez anos. Se o movimento cresceu no último ano? Shaun responde: “Definitivamente sim. Mais pessoas estão vindo para surfar no reef ou simplesmente para vê-lo. Provocou um interesse grande em quem vive a algumas horas daqui, no sudoeste da Inglaterra. Foi importante para mostrar que nesta costa temos surf também” Na ansiedade de ver o projeto sair do papel, o próprio Shaun deu uma força – literalmente – na construção do recife. Fazia o trabalho braçal de tirar os sacos de areia do barco e direcioná-los na posição certa para irem ao fundo do mar.
Para quem não sabe, vai aqui uma rápida explicação sobre como esse monte de sacos de areia funciona para turbinar o surf: grande parte da qualidade de uma onda é garantida, basicamente, pelo fundo do oceano. Os melhores picos de surf têm fundos duros de corais ou pedras. A onda se forma justamente quando a ondulação se aproxima da costa e encontra essas partes fixas e duras. É isso o que acontece no recife artificial – que tem o tamanho de um campo de futebol. Ele atua como uma espécie de rampa para as ondas se formarem ali. “A topografia do fundo é um dos fatores que mais influencia. Um recife artificial apresenta um relevo estável e geometricamente perfeito para interagir com a energia das ondulações”, explica José Luiz Romeo, da Liquid Dreams, que monitora swells. “Tem gente que critica o recife de Boscombe porque não entende como ele funciona. Já ouvi vários casos de pessoas que foram à surf shop da orla pedir pra ligar as ondas do recife”, conta Paul Humber.
Bloqueio francês
É domingo, dia de aula prática na praia, e um grupo de 11 alunos está enfileirado de frente para o mar esperando por ele. É hora de Andy Joice explicar em terra firme como fazer para ficar de pé na prancha dentro d’água. Ele é dono da Surf Steps School, a principal escola de surf de Boscombe e, apesar de não gostar muito da onda formada no recife – “às vezes, as quilhas chegam a tocar nos sacos de areia!” –, ele reconhece que a obra fez bem para o surf local. “Não temos bons picos de surf no sul da Inglaterra. Grande parte da ondulação é bloqueada pela França. Com o recife, aqui virou um surf point conhecido. Recebo ligações de alunos de outras partes perguntando se damos as aulas no recife.”
“Às vezes, as quilhas chegam a tocar nos sacos de areia!”
Não, as aulas não são no recife. Ninguém ousaria levar aprendizes a uma distância de 250 metros da praia para aprender a dropar uma onda. Mas o que se espera desses alunos, atraídos por um novo cenário do surf, é que eles vejam o recife como um desafio futuro. Pelo menos é o que Paul Humber, o tal surfista local, espera. “Se as nossas crianças crescerem aspirando um dia surfar na onda do recife já terá valido a pena. Se isso acontecer, não vai existir onda no mundo que elas não estejam preparadas para surfar.”
Só marola?
Por aqui, a primeira onda formada por um recife artificial parece estar longe de quebrar. Algumas praias foram cogitadas, mas, na prática, pouco foi feito. A Trip apurou quatro lugares onde o tema foi discutido: Balneário Camboriú (SC), Niterói e praia da Macumba (RJ) e Boiçucanga (SP). Em Camboriú, Marcos Gândor, autor do projeto, diz que “o prefeito deu carta branca, mas os estudos de viabilidade não começaram”. Em Niterói, falta verba. Em Boiçucanga e na Macumba quem se interessou foi a empresa ArAM, mas nenhuma marolinha foi levantada. Alguma esperança? “Temos um projeto bem encaminhado, bancado pela iniciativa privada”, diz Maurício Andrade, da ArAM. Em que praia? “Não posso divulgar ainda.”