"Os Beatles não eram meus ídolos"

por alexandre matias

Geoff Emerick gravou os discos mais experimentais da banda e fala sobre a naturalidade que tinha no trabalho e na relação com eles

Dois dias depois de ter sido contratado para trabalhar no hoje icônico estúdio de Abbey Road, em Londres, na Inglaterra, o jovem Geoff Emerick teve a oportunidade de assistir à gravação do primeiro single de uma nova banda que a pequena gravadora Parlophone iria lançar ainda no final de 1962. O grupo era uma banda de Liverpool que estava começando a chamar atenção no sul do país e que em pouco tempo ganharia o planeta e mudaria completamente a história da música e da cultura. Ele tinha 17 anos quando viu os Beatles pela primeira vez na vida e mal sabia que em poucos anos seria o principal assistente de estúdio do grupo que também transformaria as técnicas de gravação para sempre.

Geoff vem ao Brasil pela segunda vez, agora para Porto Alegre, para falar sobre seu trabalho — em dois formatos: uma entrevista mediada na noite da próxima quinta e uma masterclass que será realizada durante três dias, entre 15 e 17 de junho, na Áudio Porto. Nos encontros, o engenheiro irá detalhar parte das obras que ajudou a registrar, como a parte mais ousada da discografia dos Beatles, e também trabalhos com artistas como Badfinger, Elvis Costello, Jeff Beck, Supertramp, Nazareth, entre outros. “A ideia é sempre mostrar como eu gravo”, explica em entrevista por telefone. “Cada disco eu faço de uma forma diferente, mas há pontos em comum, principalmente no que diz respeito às ondas harmônicas de gravação. Hoje em dia, quando o produtor ou técnico de som não gosta do som de uma guitarra, ele acrescenta um efeito ou um plugin, em vez de procurar outro tipo de guitarra. Isso está completamente errado, é o ângulo inverso do que deve ser feito em relação à gravação.”

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“Gosto das imperfeições, que são dadas pelos harmônicos que você captura no estúdio”, ele continua. “As tecnologias de gravação atuais tendem a passar por cima destes harmônicos e as pessoas perdem isso sem perceber, porque elas não têm a vivência com a tecnologia analógica. Te dou um exemplo: há muito tempo eu estava trabalhando com um violinista norte-americano em Abbey Road e ele tinha um violino Stradivarius [instrumento reconhecido como tendo um dos sons mais cristalinos existente]. Se você o grava como se ele fosse um músico qualquer usando tecnologia digital, ele soa como um violino qualquer, sem capturar as nuances do instrumento ou do nosso estúdio. E isso tem tudo a ver com as ondas harmônicas.”

“Os Beatles não eram meus ídolos, porque eu vi eles acontecendo. Eles gravaram "Love Me Do" dois dias depois que eu comecei a trabalhar lá”

Esse vai ser o teor das conversas, que inevitavelmente passarão por sua convivência com os Beatles, com quem ajudou a moldar o som da banda em sua fase mais experimental: quando pararam de fazer shows para se aventurar apenas em estúdio. Emerick estava perto dos Beatles desde que eles começaram a gravar discos, mas quem cuidava do som dos quatro, além do produtor George Martin, era o engenheiro de som Norman Smith.

“Os Beatles não eram meus ídolos, porque eu vi eles acontecendo”, lembra-se. “Eles gravaram 'Love Me Do' dois dias depois que eu comecei a trabalhar em Abbey Road. Era só um trabalho, mas eu vi o crescimento deles como parte do meu trabalho. Nós não éramos conhecidos mas reconhecíamos uns aos outros no estúdio, sabe? Até que eu comecei a trabalhar com masterização e eu passei a trabalhar diretamente com eles a partir do álbum Revolver, de 1966. Eu assisti à carreira deles do começo até o final.”

Ele explica que, embora estivessem cansados de fazer shows, o que fez o grupo se dedicar principalmente aos discos foi seu senso de aventura, mais do que a estafa e a exaustão dos dias de turnê. “Quando gravamos o Revolver eles ainda estavam fazendo shows, mas eles não conseguiam reproduzir o que fazíamos no estúdio nos palcos. Eles até tentavam, mas era um desastre”, ri. “Quando começamos a gravar Sgt. Pepper's, em 1967, John Lennon dizia que, agora que eles não iriam mais fazer shows, a gente não precisava se preocupar com a sonoridade ao vivo daquelas novas músicas — e isso deu um rumo completamente diferente para eles. E todos olharam pra mim e eu não tinha nenhum equipamento, não havia plugins, era só um gravador de dois canais e uma câmara de eco, sabe? O desafio era criar a partir daquilo, a partir do nada. Metaforicamente eu só tinha cola e fita adesiva, eram esses os recursos que eu tinha para criar o que eles queriam.”

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Ele também conta de sua relação com seu chefe direto na época, o mítico produtor George Martin (1926-2016). “Muito se fala da relação dos Beatles com George Martin como se ele fosse o diretor da escola — e de fato ele era. No começo, eles ficavam nervosos quando ele vinha falar com eles. Aos poucos, isso foi diminuindo, mas a gente se entendeu a partir disso e muito rápido, principalmente por termos o mesmo tipo de senso de humor. Então desenvolvemos uma cumplicidade que bastava olhar no olho um do outro para saber o que estava certo ou errado, trocávamos olhares e sorrisos mais do que palavras. Líamos a mente um do outro e muita gente comentava sobre isso durante as sessões de gravação: 'Você e o George não se falam durante as gravações?' A gente não precisava, não tinha muita discussão.”

Geoff lembra da dinâmica dos Beatles em ação. “A parte mágica daquilo era que Lennon e McCartney eram opostos completos. Quando os dois começavam uma música, um deles escrevia algo num papel — uma estrofe, um refrão — e falava para o outro que não tinha uma ideia de como terminar aquela parte. Era essa combinação entre os dois que faziam as coisas acontecerem, além de George e Ringo trabalharem cada vez mais pesado para soarem melhor.”

“Eu falava com John e Ringo, George era mais na dele e eu me dava melhor com Paul, porque ele tem isso de ser um músico dos músicos”

Pessoalmente, ele era mais próximo de Paul. “Eu falava com John e Ringo, George era mais na dele e eu me dava melhor com Paul, porque ele tem essa característica de ser um músico dos músicos.” Foi Paul quem sugeriu, a partir da marca de cigarros que Geoff fumava, Everest, que o último disco da banda tivesse o nome do pico mais alto do planeta. Mas quando eles descobriram como seria difícil chegar ao Himalaia para fazer uma foto, preferiram homenagear outro local: o estúdio onde gravaram todos seus discos. E assim Abbey Road, de 1969, foi batizado.

Geoff reforça que o papel do produtor não é um papel técnico: “Para mim, o produtor não é um engenheiro, é o cara que reúne as pessoas certas para soar do jeito que ele acha que a canção deveria soar. Hoje em dia é tudo tão mais simples, é só apertar um botão, e as pessoas acham que o trabalho é só esse.” Ele aproveita para dar uma cutucada na atual música pop e no jeito que as coisas são realizadas digitalmente: “Eu me pergunto quem é que merecia ganhar os Grammys de melhor vocalista hoje em dia, se é o vocalista mesmo ou se o técnico que costurou os pedaços de vocais usando o ProTools [software de edição de som]”.

Geoff chega a Porto Alegre como mais uma iniciativa do Audio Porto, complexo de estúdios que realiza uma série de ações para o público entender melhor o processo de gravação. “Ele é um profissional que mudou muitas regras de como as coisas eram feitas em estúdio”, explica Rafael Hauck, engenheiro-chefe e co-fundador do estúdio Audio Porto. “E essa é a nossa missão na Audio Porto: conseguir receber esse tipo de profissional e se transformar em referência em produção musical, fazer esses registros de forma compatível com o mercado global.”

Vai lá: Geoff Emerick em Porto Alegre. 14/6, às 18h, palestra; 15, 16 e 17/6, das 10h às 18h, Master Class Premium. No Audio Porto.

Créditos

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Fotos: Divulgação

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