Um dia com a lutadora Amanda Nunes, a primeira mulher a ser campeã em duas categorias distintas do UFC
A noite de sono do dia 29 de dezembro de 2018 foi estranhamente tranquila para a baiana Amanda Nunes. Preocupada, a também lutadora Nina Ansaroff checou algumas vezes a pulsação de sua namorada, para certificar-se de que ela estava mesmo viva. “Uma sempre assiste ao sono da outra na noite anterior a um combate, para depois analisarmos juntas o que aconteceu”, conta Amanda. “E a luta começa no próprio sonho, porque a gente não consegue se desligar, fica agitada.” Por isso a desconfiança de Nina: a baiana Amanda dormia o sono dos justos justamente antes do que seria o combate mais duro de sua vida. Ela encararia no dia seguinte, num evento do UFC, Cris Cyborg, a mulher mais temida do mundo do MMA, inderrotável fazia 13 anos.
LEIA TAMBÉM: MMA ou boxe? Um desafio entre a luta mais tradicional do mundo e a que mais fatura fãs (e dinheiro) no Brasil
A luta tinha um elemento ainda mais perigoso para a baiana: Cris era campeã peso-pena (até 65,7 quilos), categoria acima da dela, que detém o título do peso-galo (até 61,2 quilos). “A única vez que me deu frio na barriga foi quando enfrentei a Miesha Tate, na luta em que ganhei o cinturão”, conta Amanda, sentada no hall do hotel de São Paulo em que está hospedada com Nina, sobre o combate de 9 de julho de 2016, quando se tornou a primeira brasileira a ser campeã mundial do UFC. “No fim do ano passado, contra a Cris, fiz a melhor preparação de todos os tempos. E estava tudo dando tão certo que pensava que era impossível eu perder. Dormi tão calma e tanto que no dia seguinte eu estava com a cara toda inchada.” De fato, Amanda venceu. E de forma espetacular: por nocaute aos 51 segundos do primeiro round. Os fãs assistiam estarrecidos àquela lutadora que teve a audácia de desafiar Cris Cyborg, amplamente tida como favorita, e que, mais uma vez, fazia história. Era a primeira mulher a deter dois títulos mundiais de categorias diferentes no UFC.
Na manhã chuvosa de 4 de fevereiro, uma segunda-feira em que os termômetros finalmente deram trégua em São Paulo, Amanda Nunes acaba de ser maquiada e faz uma sessão de fotos para a Trip. Este é o primeiro compromisso do dia, que já foi mais longo. A lutadora de 30 anos pediu para o UFC para que encurtasse sua agenda – estava cansada da viagem da Flórida (onde mora) para Fortaleza (onde passou o fim de semana num evento do UFC) e, de lá, para São Paulo, de onde ainda seguiria no dia seguinte para Monteiro, cidade na Paraíba onde mora sua mãe Ivete e onde ela está, aos poucos, montando uma fazenda (“tenho um monte de bicho: porco, galinha, cavalo e estou comprando umas vacas pra dar leite”, fala). Segura, orgulhosa, os dois cinturões, pesados artefatos de cinco quilos e meio cada. E mostra uma foto em que ostenta todos os seus seis cinturões, que ficam dispostos sobre a lareira da casa em que vive com Nina: o UFC dá uma cinta a cada vitória do atleta, mesmo que em defesa de títulos, e o lutador pode ficar com elas para sempre.
Primeiras vezes
Amanda tem outros pioneirismos em sua conta: foi a primeira brasileira a assinar com o UFC, o maior torneio de MMA (ou artes marciais mistas) do planeta; a primeira brasileira a lutar em seu país pela organização, em 2013, e também a primeira campeã do torneio a se assumir gay. Ela não gosta de usar a homossexualidade como uma bandeira, porque acha que as pessoas devem tratar o tema com a naturalidade que ele merece, mas resolveu falar publicamente sobre o assunto por reconhecer a importância de isso ser feito por uma atleta mundialmente famosa. E conta como conheceu Nina: em 2013, no Kansas (EUA), em um evento do Invicta FC, organização americana de lutas femininas. “Ela nem chamou muito minha atenção porque a achei meio masculinizada e aquele não era meu estilo”, ri a campeã.
Dias depois, Nina apareceu na academia em que Amanda treinava, na Flórida – e na qual, sem grana à época, a atleta morava. “Ela veio ajudar uma amiga que temos em comum nos treinos”, lembra. “Achei graça quando vi uma atleta acordando na academia e indo com sua toalha e sua escova de dentes pro banheiro”, diz Nina. As duas ficaram amigas e saíam para almoçar sempre, até que Nina chamou Amanda para ir a um evento e foi buscá-la na academia toda produzida. “Eu olhei e... uau!”, conta a brasileira, rindo. “Ela estava toda gatinha. Eu nem falava inglês e pensei que ia ter que começar a aprender a língua para me comunicar melhor com ela.” Amanda sabia dizer duas frases que, segundo ela diz em tom de galhofa, a ajudavam a sobreviver no país: “I’m hungry” e “I like girls”. Foi isso que disse certa vez a Nina, que entendeu o recado. Em duas semanas as duas já estavam morando juntas.
A garota Amanda Nunes cresceu na pequena Pojuca, a 70 quilômetros de Salvador, dando trabalho para a mãe. Mais nova de três irmãs, foi criada sem a presença do pai e a mãe dividia-se em dois empregos de auxiliar administrativa. Danada (“era uma criança abençoada”, ela costuma usar o eufemismo), Amanda vivia se enfiando em brigas, e a mãe a colocava para praticar vários esportes para que ela gastasse energia. Futebol virou sua paixão de infância, que a acompanha até hoje – a ponto de ela dizer que, assim que parar de lutar, vai virar jogadora (“já estou em contato com alguns times americanos de soccer, lá o futebol feminino é muito grande”, conta). Começou a praticar arte marcial incentivada pela irmã do meio, Vanessa. “Ela já morava em Salvador e me ligou um dia dizendo que estava fazendo jiu-jítsu. Nunca tinha ouvido falar disso. Lá em Pojuca, a gente achava que era nome de doença”, brinca. No dia seguinte ao telefonema da irmã, colaram um cartaz na cidade dizendo que os primeiros a se inscreverem numa nova turma de jiu-jítsu fariam o curso gratuitamente. “Parecia coisa predestinada”, diz Amanda, que se inscreveu.
Pojuca ficou pequena demais para a menina que, na segunda semana de treino, já foi colocada para lutar em um campeonato pequeno. Para dedicar-se ao esporte, Amanda foi morar em Salvador. Sem dinheiro para alugar um quarto, ficou na academia do mestre Ricardo Carvalho. Ganhou campeonatos locais, o Panamericano e o Mundial. Achou que não tinha mais o que conquistar e precisava ganhar dinheiro com o esporte. Foi quando pensou em fazer MMA. A influência veio do tio, José Alves, que era lutador de vale-tudo, como as artes marciais mistas eram chamadas antes das várias regras e de virar um esporte regulamentado. “Minha mãe era córner do meu tio, dava instruções para ele nas lutas. Os dois ficavam pra cima e pra baixo no país.”
Amanda começou a treinar ainda no Brasil e perdeu sua primeira luta, para Ana Maria Índia. Foi quando teve certeza de que ia se dedicar ao esporte. Seu mestre era então Edson Carvalho, irmão de Ricardo, que tinha uma academia em Nova Jersey, nos Estados Unidos. Ele prometeu levar a baiana para fora do país para treinar. Ela chegou a ir, dois anos depois, para lá, com apenas 20 dólares no bolso. Mais uma vez, morou na academia, mas voltou por causa do visto e porque teve certo desentendimento em relação aos treinos. No entanto, havia conhecido lá o dono de uma outra academia, em Miami, para onde acabou indo em 2013 – desta vez, para ficar.
Quase 3 horas da tarde, Amanda está em seu segundo – e último – compromisso do dia, uma entrevista para o programa Bola da Vez, na ESPN. Assim que chega à emissora, no bairro de Perdizes, depois de um rápido almoço no próprio restaurante do hotel, o apresentador João Carlos Albuquerque a recebe na rua: “Menina, o que é que você tem na cabeça?”, pergunta. Ele conta mais tarde, no estúdio, que não acompanha muito MMA porque acha o esporte um tanto violento. Pouco antes de começar a gravação, ela tira novamente os cinturões dos invólucros que os protegem. Coloca-os sobre a mesa que compõe o cenário e uma pequena multidão se forma à volta, admirando os objetos.
LEIA TAMBÉM: Um dia na vida de Minotauro. Anderson Silva, Rodrigo Pezão e Amaury Bitetti falam sobre o lutador
No programa, Amanda diz que não se ressente de não ter o reconhecimento que Ronda Rousey conseguiu no universo da luta, apesar de ter derrotado a atleta. E conta, entre outras coisas, sobre seus planos futuros: está organizando o Primeiro Torneio Amanda Nunes de Futebol Feminino, que ocorre nos dias 23 e 24 de fevereiro em Pojuca e já tem outra cidade interessada em sediar o próximo; pode ser que se aposente depois de uma possível luta contra a ex-campeã Holly Holm em maio, em Curitiba (o combate ainda não está confirmado, mas vem sendo especulado na imprensa); mas não descarta descer de categoria, para os 57 quilos, e tentar disputar o cinturão – assim, faria ainda mais história. Simpática e doce, a atleta, que havia contado pouco antes para a Trip, que pretende se casar duas vezes com Nina (uma nos EUA, em uma cerimônia bem pequena, outra no Brasil, para os familiares e amigos) ainda este ano, ao fim da gravação do programa ganhou outro fã. “Depois dessa entrevista, vou até passar a acompanhar mais o UFC”, disse João Albuquerque, que quis uma foto com Amanda. “Ela é demais, né?”, falou para Nina. Balançando a cabeça, a namorada concordou.
Créditos
Imagem principal: Raquel Espírito Santo