Leia em primeira mão um trecho das Páginas Negras com Fernanda Torres
Abaixo, trecho das Páginas Negras com a atriz e escritora Fernanda Torres na Trip que chega às bancas esta semana. Entre os assuntos abordados na entrevista: House of Cards, Dilma, Aécio, Marina, engajamento, depressão, desafios (e temores) da vida de escritora e a relação entre Machado de Assis, facada no baço e coxinha de ossobuco. Vai lá!
Num texto de Sete anos, seu livro novo, você conta a saga que foi a filmagem de Kuarup, dirigido pelo Ruy Guerra, no Parque Nacional do Xingu, no Mato Grosso, em 1988. Você narra o inferno que são os filmes de locação, projetos que parecem ameaçados por todos os lados, o tempo todo. E para o escritor, quais são as ameaças? Acho que são psíquicas, ligadas à autoestima, torturas mais sofisticadas. Com o ator a coisa é mais na pele; é se maquiar, gravar, ter que estar bem, disposta – e é desesperador! O negócio da escrita é um problema com a complexidade da consciência. Uma vez uma modelo me falou: “o duro de ser modelo é que uma atriz pode estar mal num papel ou em outro, mas a modelo precisa ter um nariz específico, um sorriso; são coisas que não dá para mudar”. Para o escritor é ainda pior. Não é um nariz, é a consciência. Não há o que se possa fazer se o escritor tem uma consciência superficial.
Seu romance, Fim, teve ótima recepção crítica, recebeu elogios do Roberto Schwarz, você foi convidada para a Flip. Quando consegue esse tipo de espaço ou uma crítica é boa, você pensa: "isso acontece porque sou uma atriz conhecida"? Como acha que seu prestígio influencia essa dinâmica? Isso te incomoda? Acho que é justamente o contrário. Uma atriz que escreve suscita enorme desconfiança. O fato de ser conhecida me ajudou a divulgar o livro, isso, sem dúvida, mas é como no teatro, ou no cinema, você pode ter um astro de Hollywood, mas se o filme não funcionar, o público não aparece. Eu me sinto muito despreparada para o mundo das letras. É como se voltasse ao início de carreira às vésperas de completar 50 anos. Eu desconfio de mim, da minha capacidade como escritora. Eu me vejo como um ser promissor, mas não sei se jamais vou conseguir dizer para mim mesma que sou uma escritora. Talvez eu nem queira me assumir assim para não perder a liberdade de poder escrever quando sentir necessidade, vontade, inspiração. A vida toda alternei trabalhos em teatro, cinema e TV porque sempre acreditei que um veículo reinventa você para o outro. A literatura entrou nessa roda agora. As crônicas me obrigam a ter uma prática diária, que um escritor tem que ter. Eu levei 48 anos para chegar ao romance, é um livro que nasceu da minha descoberta da morte, do tempo, das frustrações da vida.
Na última Flip, o Andrew Solomon falou que embora a depressão "não seja um fenômeno recente", a sociedade atual está "vivenciando mais depressão do que antigamente, ou seja, estamos diagnosticando mais a depressão". Você já teve depressão? Já tomou remédios? Hoje, os laboratórios farmacêuticos medicam qualquer melancolia. Até o luto foi incluído na lista de doenças passíveis de serem tratadas. Há um exagero no uso de antidepressivos. O Antônio Damásio diz que a tristeza é um alerta, uma arma que a natureza criou para chamar a atenção para um problema que precisa ser encarado. É como a síndrome dos que não sentem dor. Sem dor, você pode sofrer um corte profundo e não perceber. Ele acredita que uma sociedade que deseja evitar a tristeza é uma sociedade doente. Nunca tomei nada com efeito cumulativo. Desses remédios que você toma e só dali a três semanas vai saber no que deu. No máximo, um S.O.S. para um dia difícil. Desconfio da ciranda que trata dos efeitos colaterais dos remédios, mas não do paciente em si. O médico pergunta sobre o resultado da droga, muda para outra, ou indica uma terceira para ser tomada junto com a primeira. Depois de um tempo, o paciente passa a sofrer de dependência, de causas que não são mais a angústia, mas a própria medicação. Acho que os interesses comerciais transformaram a depressão em lucro, e a população está servindo de cobaia. Por outro lado, a vida moderna é tão artificial para o homem, que, muitas vezes, é preciso interromper o funil da ansiedade, para que o sujeito possa levantar a cabeça e andar. Os antidepressivos ajudam muita gente, mas não podem servir de muleta ou vício. Penso que o paciente deve estar atento para se livrar do remédio assim que puder suportar a dor de ser o que é.