Especialista em transporte confessa para Roberto da Matta: “Às vezes, tenho vergonha de usar meu carro”
O jornalista americano Tom Vanderbilt é uma das principais vozes sobre o trânsito e o papel do carro no mundo de hoje – e na sociedade de amanhã. autor do best-seller Traffic: por que dirigimos assim?, Vanderbilt conversou com Roberto da Matta (autor de Fé em deus e pé na tábua) a respeito de novas tecnologias, velhos hábitos, símbolos de poder e confessou: “Às vezes, tenho vergonha de usar meu carro”
Certo dia, em um engarrafamento em Nova Jersey, nos Estados Unidos, o jornalista Tom Vanderbilt olhou pela janela e fez a pergunta mais clichê para quem está preso no trânsito: “Por que a pista ao lado anda mais rápido que a minha?”. A diferença entre Vanderbilt e o resto dos motoristas é que ele resolveu buscar a resposta. Minuciosamente. O caso é que, em vez de encontrar a tal resposta, Tom se viu engarrafado em muitas outras questões que, por trás do volante, eram invisíveis. Por que temos tão poucas formas de nos comunicar no trânsito? Por que todo motorista pensa que dirige bem? Como diferentes culturas moldam trânsitos diferentes? Por que somos especialmente egoístas dentro de um carro?
Vanderbilt, que nasceu em Illinois em 1968, levou sua pesquisa a sério e, pelos dois anos seguintes, afundou-se em estatísticas, leis e estudos sobre como diferentes cidades e países lidavam com o problema do trânsito. E descobriu que, se quisermos entender por que o automóvel se torna cada vez mais um cativeiro, precisamos olhar para a psicologia humana. Sua pesquisa e seus insights renderam um livro, Traffic: Por que dirigimos assim? E o que isso diz sobre nós: Mitos, verdades e curiosidades sobre o trânsito, lançado no Brasil pela editora Elsevier, uma investigação sobre as mais óbvias e mais sutis questões em torno de uma das mais recentes e mais onipresentes das mazelas humanas: o trânsito.
O livro transborda fontes e estatísticas. Com um raro rigor jornalístico, Vanderbilt fez centenas de entrevistas. De diretores de departamento de trânsito de grandes metrópoles a psiquiatras, do interior dos EUA à Índia, de laboratórios em universidades às esquinas de Nova York. Acidentes, o tráfego de outras espécies animais, problemas de sinalização, percepção e ilusões de ótica, diferenças de gêneros ao volante, perspectivas futuras... Seu livro é um almanaque de improváveis constatações sobre essa rede de estradas, máquinas e pessoas. Rapidamente, tornou-se uma das mais articuladas vozes que atraem a atenção de governos e cidadãos para uma urgente mudança nos padrões de mobilidade. Traffic vendeu mais de 150 mil cópias nos Estados Unidos. “Esse sonho de cada um dirigir para onde quiser a qualquer hora já está morto. Então a questão se torna como você administra as estruturas existentes”, diz.
Ele faz questão de dizer que não é um ativista anticarro, mas não esconde seu embaraço quando chega dirigindo sozinho seu carro em Manhattan, onde mora. Está cada vez mais inclinado a vender seu Volvo e, quando necessário, alugar um. Aponta a bicicleta e os carros compartilhados como grandes saídas de curto prazo para as metrópoles e se anima ao pensar um futuro em que automóveis vão se conduzir sozinhos, deixando trânsito e motoristas mais livres – como escreveu na edição de capa da revista Wired em janeiro último. Ele também escreve sobre ciência, cultura e tecnologia para New York Times Magazine, Rolling Stone, Slate, Popular Science, entre outros veículos. Seu trabalho tornou-se rapidamente uma referência, e hoje, aos 44 anos, Vanderbilt é um solicitado palestrante e consultor sobre o tema no mundo todo. Curiosamente, mesmo após anos de pesquisa, ele nunca teve a (discutível) sorte de encarar o trânsito em alguma das grandes cidades brasileiras.
Por isso, para entrevistar Tom Vanderbilt, não havia ninguém melhor do que o antropólogo Roberto da Matta, veterano estudioso da cultura e da psicologia brasileiras, que publicou 18 livros. O mais recente, Fé em Deus e pé na tábua, é um tratado sobre como o trânsito ilustra as relações de autoridade e poder que definem o Brasil há séculos. Da Matta discutiu o assunto nessas mesmas Páginas Negras em setembro de 2010. Vanderbilt sabia do livro – e, antes de qualquer pergunta, lamentou que só houvesse edições em português.
Da Matta formou-se em Harvard no início dos anos 1960 e é familiarizado com a mentalidade e o trânsito norte-americanos. Em duas horas de conversa, em uma ponte telefônica Nova York - Niterói, Da Matta e Vanderbilt, dois homens de gerações, nacionalidades e ocupações diferentes, buscaram vias paralelas, bifurcações e pontes para seus estudos. Como o carro se transforma em símbolo de liberdade ou de prisão. Como determina políticas, relações sociais e econômicas. E como, muito mais do que uma máquina que nos carrega, é um possante amplificador de nossa alma e cultura. Afinal, enquanto automóveis não dirigirem sozinhos, todo motorista é, antes de tudo, um ser humano.
Quando eu escrevi meu livro Fé em Deus e pé na tábua, minha intenção era mostrar, por meio da maneira como as pessoas dirigem, de que forma o brasileiro resiste a situações em que a igualdade é inevitável, como no trânsito. Como você, um jornalista americano, com uma visão muito mais universal do que a minha, enxerga o futuro do trânsito? Quais as grandes questões entre a forma como os americanos dirigem e os problemas estruturais nos Estados Unidos?
Se acreditarmos nas projeções sobre urbanismo divulgadas pela ONU, as populações urbanas já são maioria, então, quando se fala de problemas de trânsito, geralmente se fala do trânsito urbano. Quando as cidades ficam cada vez mais populosas, chega-se a um ponto, e de fato já chegamos, em que esse sonho da mobilidade individual particular se choca com problemas reais. O primeiro é o obstáculo logístico. Uma das minhas estatísticas preferidas foi feita por um engenheiro de trânsito aqui de Nova York, que disse: “Se todos que trabalham no centro financeiro de Nova York quisessem dirigir até o trabalho, se tirássemos o metrô, teríamos que construir 178 pontes no Brooklin e a Quinta Avenida precisaria de centenas de faixas”. A gente meio que esquece quanto espaço físico o carro requer. Esse sonho de cada um dirigir para onde quiser a qualquer hora já está morto. Então a questão se torna como você administra as estruturas existentes, já que, por melhor que você administre, haverá sempre um limite. Então, aparece outra questão: será que dedicar essa estrutura ao carro vale a pena? Você começa a questionar para que servem as ruas. Em Nova York, a discussão no momento não é sobre como conseguir fazer andar o maior número de carros pelas ruas no menor tempo, mas sobre como equilibrar os tipos de mobilidade.
“Esse sonho da mobilidade individual particular, de cada um dirigir para onde quiser, a qualquer hora, já está morto. a questão agora é aprender a administrar as estruturas existentes”
A primeira vez que fui aos Estados Unidos, em 1963, foi quando comecei a me interessar pela maneira de as pessoas dirigirem. Fiz um amigo nigeriano e, certo dia, voltando da aula, íamos atravessar uma das ruas mais movimentadas da cidade. Ele me disse: “Olha só o que eu vou fazer”. Colocou o pé na rua e os carros pararam! Para ele, aquilo era tão surpreendente quanto para mim, porque a experiência dele na África era parecida com a minha no Brasil, de que, se você fizesse isso, morreria atropelado [risos]. Para nós dois, as ruas pertenciam aos motoristas! Outro choque foi a primeira vez que estive em Nova York. Um amigo de Manhattan disse que não queria comprar um carro justamente pelo problema que você mencionou: onde diabos ele pararia um automóvel? Ele usava táxi. Realmente, o sonho da mobilidade individual não é mais possível. Talvez seja necessário limitar esse tipo de transporte nas grandes cidades. O que você acha disso?
É uma questão relevante. Eu tenho um carro... Talvez eu devesse dizer que o carro é que me tem... É uma forma melhor de ver a situação, dadas as exigências que me impõe no dia a dia, como achar uma vaga para ele. No momento, é conveniente para mim tê-lo, mas, se uma ou duas coisas mudassem, eu o venderia. Existem esses sistemas de car sharing. Eu sou do Brooklin, mas Manhattan é o único lugar nos EUA onde os proprietários de veículos são minoria. Mas, se eu precisasse, passaria a usar car sharing. Eu não sou um fundamentalista anticarro [risos]. Bem, alguns dias eu sou... mas o carro tem seus atrativos. Existe uma frase, “Mobilidade como serviço”, que acho que diz respeito a esse futuro do qual você pergunta. Assim como antes as pessoas tinham suas coleções de discos, depois de CDs, mas, com o tempo, se fez desnecessário ter todos esses objetos. Então, quando você quer ouvir música, você toca em streaming direto da nuvem, como dizemos, com algum aparelho. Podemos pensar em mobilidade direto da nuvem também. O táxi sempre foi uma maneira de mobilidade compartilhada, mas acho que soluções desse tipo irão multiplicar-se. Eu fui à feira de automóveis de Frankfurt este ano e foi interessante conversar com os grandões de marcas como Audi. Claro que eles ainda vendem muitos carros, mas estão se questionando seriamente e entrando também nesse novo ramo do carro compartilhado – e não como uma propriedade individual.
No Brasil, o carro é um dos principais símbolos das pessoas bem-sucedidas. Para redefinir esse papel seria necessário redefinir o modo como criamos a identidade social do sucesso. O fato é que nós nos ligamos emocionalmente aos objetos, eles são nossos companheiros. Eu não preciso de todos os livros da minha coleção, mas sou ligado a eles. Alguns antropólogos falam de objetos que têm vida. Isso não é exclusividade de grupos tribais e sociedades primitivas, porque agimos exatamente da mesma maneira. Outro ponto é que o Brasil nunca planejou suas cidades. E, por ser uma sociedade anteriormente baseada na escravidão, quem é rico e famoso não está sujeito a regras, o que é impossível ao dirigir.
Seguindo sua ideia, analisando estatísticas de renda e igualdade social, foi interessante ver que o melhor comportamento no trânsito está nos países escandinavos, onde os indicadores sociais são muito bons. Da mesma forma, o pior comportamento acontece nos países onde os indicadores sociais são piores, o que levanta essa questão do status do carro. Claro que isso ainda é muito forte, mas está mudando. O número de jovens tirando habilitação tem caído ano a ano. Em grande parte isso é motivado pelo alto custo de ter e manter um carro. As pesquisas mostram que hoje para os jovens é mais importante um celular do que um carro. Claro que Nova York tem suas particularidades, mas, às vezes, quase sinto vergonha de ter carro. Eu não uso tanto assim, mas, se, por exemplo, vou a uma festa de carro, nem quero contar para as pessoas que fui dirigindo.
“Assim como as pessoas tinham discos, depois CDs e hoje não é mais necessário ter todos esses objetos, podemos pensar em mobilidade direto da ‘nuvem’ também, com carros compartilhados”
É como uma mulher que hoje em dia tem vergonha de dizer que tem um casaco de mink.
Bem, claro que isso tem a ver com meu círculo de relacionamentos, mas a percepção geral sobre o carro está mudando. Há muita iniciativa nesse sentido. Hoje, 18 de maio, por exemplo, é o Bike-to-work day [dia de pedalar para o trabalho] em Nova York.
O problema em países como Brasil ou na África é a falta de opção. Temos que inventar novas alternativas para convencer as pessoas a não usarem o carro. E a relação do brasileiro com as regras, inclusive as de trânsito, é muito ruim, porque no Brasil obedecer regras é sinal de inferioridade. Quando eu falava para os estudantes de Notre Dame sobre o Brasil, eu dizia que até os criminosos mais perigosos dos Estados Unidos, quando entram no carro, põem cinto de segurança. Instintivamente. É uma visão de mundo que você começa a ter no colegial ou na faculdade, que aqui não temos. Nós estamos começando a falar desses temas, porque nos últimos dez anos estamos criando mais igualdade, graças a Deus.
Tem um clichê, uma frase supostamente atribuída a Margaret Tatcher, que diz que, se um homem tem de pegar um ônibus aos 30 anos, então ele é um fracasso. Mas a questão é não só ter transporte público disponível – porque em muitas cidades americanas ele está disponível, mas não é feito de forma atrativa ou direcionada a ninguém além dos que não têm opção. O transporte público na Cidade do México foi um problema por muitos anos, até que decidiram substituí-lo pelo sistema desenvolvido em Curitiba. Agora não só funciona de maneira muito mais ordenada como adquiriu um prestígio social. Tornou-se mais eficiente do que o carro e mais desejável do que o metrô. Então é algo que pode ser feito. Transporte público não precisa ser uma experiência mortificante e depressiva, pode ser feito de maneira racional e ser socialmente desejável.
Como podemos mudar nossa percepção do que é realmente necessário? Aqui em Niterói estão sendo feitos esforços para melhorar o transporte público, o que certamente reverterá na diminuição do número de carros. Mas como fazer para diminuir o desejo de ter um carro? E as questões de segurança pública ligadas a isso?
Claro que o transporte apenas reflete questões muito mais profundas e complicadas. Por exemplo, um dos cruzamentos de estatística que faço no livro é de mortes no trânsito com nível de corrupção em um país, segundo os dados da organização Transparência Internacional. E existe uma forte ligação. Basicamente, quanto mais corrupto o país é, maior é o índice de mortes no trânsito. Evidentemente, a corrupção não é a causa direta, é apenas mais um dado associado. Na Índia, por exemplo, existe um grande mercado negro de habilitações. É mais eficiente do que o oficial. É mais fácil comprar uma carteira falsa do que passar por toda a burocracia do sistema. Na África do Sul, eles dificultaram o sistema para conseguir uma habilitação, achando que seria mais seguro, mas isso apenas aumentou o mercado negro. Na Cidade do México os policiais de trânsito são folcloricamente corruptos, então, baseados na ideia de que as mulheres são menos corruptas, substituíram todo o efetivo por mulheres.
Espero que não se corrompam – embora eu saiba que o poder muda as pessoas. Mas gostaria de insistir na questão do desejo. Não é possível mantermos o mesmo nível de consumo dos últimos dois séculos. Talvez seja melhor tentar abrir essa caixa de Pandora agora e discutir diferentes construções de identidade, além dessas questões como a da corrupção. E não somos como os Estados Unidos, uma coleção de pequenos países. Eu vivia em Madison, Wisconsin, no final da década de 1970 e aquilo parecia a Escandinávia. Me impressionava muito o jeito que policiais de trânsito lidavam com o motorista. Eles eram amáveis e claros e conduziam a conversa de maneira que se tornava impossível chegar a uma situação comprometedora. Isso ainda precisamos aprender aqui.
Isso levanta a ideia de normas sociais, que são muito importantes quando falamos de comportamento no trânsito. O limite de velocidade em quase todas as ruas de Nova York é de 30 milhas [48,2 quilômetros] por hora. Mas na rua onde moro, se fôssemos agora com um radar medir a velocidade dos carros que passam, eu te garanto que menos da metade estaria respeitando o limite. Às vezes as leis são um pálido reflexo do comportamento. E qual é então a norma social? Quando você vê todo mundo fazendo uma coisa, isso se torna a norma. E acaba sendo mais eficiente ser corrupto ou dirigir sem respeitar as regras. Você falou que o poder muda as pessoas. De fato, muitos comportamentos no trânsito são expressões de poder. Me fascina ver o trânsito como esse laboratório de psicologia aplicada. Quando você faz um trajeto de carro, pense em quantas interações você tem com outras pessoas – talvez não nas condições ideais, porque de fato não é possível se comunicar, mas você tem que tomsr muitas decisões, dar passagem ou não ao outro, por exemplo. Isso depende de muitos fatores. Quanto de pressa você tem naquele momento? Qual carro você dirige? O outro motorista é uma mulher atraente? Ou o outro motorista está dirigindo um carro maior do que o seu? Nosso comportamento é influenciado por muitos fatores, e isso já foi largamente estudado. As pessoas não costumam reparar, mas se você prestar atenção nessas coisas ao dirigir vai ver como o trânsito é rico em termos de psicologia humana.Também é interessante o que você disse sobre os Estados Unidos serem pequenos países, cada lugar tem suas particularidades. Estive recentemente em Vermont, que é uma área mais rural, com menor densidade populacional, e quando eu ia atravessar a rua os motoristas paravam o carro antes até do necessário, dando passagem. Isso não acontece em Nova York. Na verdade, em Nova York é o oposto.
Me fascina que nos Estados Unidos, se um sinal está quebrado, os motoristas respeitam a regra de que passa primeiro aquele que chegou primeiro. Os brasileiros vão tentar escapar como um animal tenta fugir do inimigo. Precisamos concordar num mínimo de regras comuns a todos. Por outro lado, se você dirige uma Mercedes, você vai dar passagem para o senhor de idade ou para a mulher negra? Ou vai passar por cima? Essa atitude prevalece mesmo se sabemos quais são as regras e, de certo ponto de vista, elas não significam nada. Ao mesmo tempo, se não tivermos uma discussão sobre como nos relacionamos com elas, será um mundo impossível de viver.
Já foi sugerido que tivéssemos mais possibilidade de comunicação ao dirigir, como sinais ou mensagens para os outros, mas acho que isso só pioraria a situação em momentos de conflito. Recentemente, estive em Montain View, Califórnia, no quartel-general do Google. Me demonstraram o novo carro autônomo na estrada, e era incrível. Ele funciona com vários radares e sensores. Ele não vê as pessoas como diferentes personagens – um que dirige mal, outro rico etc. – mas só objetos, com distâncias e relações matemáticas de maneira racional. E foi assustador? Não, eu estava no banco de trás e quem parecia perigoso pra mim eram as outras pessoas, falando no celular, com pressa, chateadas etc. Então, quando essa tecnologia estiver totalmente disponível, será que vamos eliminar o fator humano e transformar o trânsito numa série de algoritmos e relações matemáticas? O carro seria apenas uma cápsula que te leva aos lugares.
Um aspecto interessante sobre o metrô é que ele não para onde você acha que ele deveria parar. Você precisa andar, há um elemento altruísta envolvido. Você precisa adaptar seu trajeto ao projeto que alguém representando a coletividade estabeleceu, determinando que tal estação seria num lugar e não no outro. Quanto mais você sabe sobre psicologia social e sobre nossas capacidades físicas, mais assustador o carro fica porque ele multiplica nosso poder. Um filho da puta numa Mercedes de 300 cavalos ao lado de um cara numa carrocinha sempre terá a sensação de poder. O poder de apertar um pedal e matar alguém, o poder de destruir.
As pessoas que sofrem por causa dessas políticas são as mesmas que não querem aprovar novas legislações que mudariam, por exemplo, os impostos numa direção mais favorável. E o motivo é porque imaginam que elas um dia também serão ricos. Você fala de cavalos de força, e os carros se tornaram cada vez mais potentes nas últimas décadas. Isso acaba com os poucos ganhos econômicos que tivemos. Por que você precisa de tanta potência para dirigir a 20 milhas por hora em Nova York? As pessoas querem esse potencial, não querem perder o direito de dirigir porque sentem que isso estaria cerceando sua liberdade individual. Isso é um desafio! Porque não é exatamente o ato físico de dirigir que elas gostam, mas o potencial que ele representa, ter a escolha. Mas que tipo de liberdade representa só poder sair de casa usando um carro? Está mais para uma prisão onde você só tem uma possibilidade de mobilidade. Já disse que não pretendo ser anticarro, mas há lugares onde o carro é a única opção. Isso não é liberdade.
Acho que quando o automóvel foi introduzido nas nossas vidas, a máquina era suprema, englobava a nós e a nossas emoções. Quando alguém diz “Eu gosto de dirigir” está assumindo que gosta de sentir seu corpo e mente por meio dessa máquina. Mas... e quando isso é prejudicial pra mim e para os outros? E mesmo com essa tecnologia continuamos a ser humanos. É provável que os que te chamam de anticarros também acusam outros de serem antiarmas os que querem “tirar a liberdade de um indivíduo portar uma arma”.
Já existem estudos mostrando como a participação individual contribui no total de trânsito de uma cidade. Cada um que entra nesse sistema penaliza outra pessoa. O fato é que estamos mais ou menos coletivamente roubando nossa liberdade. E muitas vezes essa liberdade do automóvel vem às custas de outras. Em Manhattan, por exemplo, quando limitaram a passagem de carros na Times Square, houve muito protesto, mas a porcentagem de pedestres que usavam aquela via já era oito vezes maior do que a de motoristas. O maior espaço físico estava reservado à minoria dos usuários, isso é injusto e irracional. E mesmo assim houve muita gente contra. Mas o resultado é que se tornou um espaço público ainda mais popular e os negócios da região aumentaram tanto que aquele se tornou o segundo aluguel mais caro em Nova York. Essa equação carro-liberdade não é tão simples quanto parece.
Será que não seria melhor simplesmente andar? Morando próximo do trabalho, por exemplo. Nada mais de carro, nem bicicleta, meu avô andava para o trabalho, mas reclamava! Ele queria ter um carro. Como diz Machado de Assis, “é a eterna ingratidão humana”.
A palavra “pedestre” tem o significado de estar a pé, mas também carrega o significado de banal, comum, entediante, e isso remonta aos tempos da cavalaria. Se você não estivesse montando um cavalo, seria considerado inferior. Então essa questão dos modos de transporte é antiga. Então nós depreciamos andar a pé mesmo antes do carro. Mas agora é quase considerado um luxo você poder andar até o trabalho.
“Quando a tecnologia do carro autônomo estiver disponível, talvez eliminemos o fator humano do trânsito e tudo se transforme em algoritmos e relações matemáticas, e o automóvel será apenas uma cápsula que te leva aos lugares”
Você mencionou seu encontro com pessoas da indústria automobilística na Alemanha. Como eles veem esse declínio do interesse por carros por parte dos jovens? Você disse que eles estão pensando no car sharing. E como você acha que o carro enquanto máquina e produto mudará no futuro próximo?
Eles vendem muito na China, mas em lugares como Reino Unido já atingimos o pico de saturação, em que todos que poderiam comprar um carro já compraram, e nos últimos anos começou um declínio. Existem muitos projetos de “carro do futuro”, e todos eles têm características em comum. A principal é ser menores. Os Estados Unidos foram culpados por esses carros enormes. A gente tem a impressão de que quer esse espaço todo, mas ele está subutilizado. Além disso, há o problema de consumo de energia. Em cidades grandes, o carro menor é melhor porque há mais espaço para estacionar. Existe um projeto do MIT que propõe reprojetar os materiais externos do carro. Se você vai dirigir sempre devagar no trânsito da cidade, pra que uma cápsula de metal pesado? Pode ser uma camada de neoprene. Se você atropelar alguém, a chance de a pessoa se machucar diminui. E, nas cidades, geralmente a maior estatísca de morte no trânsito é de pedestres. E existe também o descompasso do que as pessoas podem fazer num iPhone e do que podem fazer num carro. O carro é esse objeto “burro”, com um motor a combustão do século 19, sem nenhuma consciência do ambiente, sem capacidade de conectar-se a outros veículos. Existe todo tipo de computadorização no carro, mas geralmente ligado a procedimentos mecânicos. Então eles pensam em como inserir toda essa rede social. E também haverá mais personalização. Quando Henry Ford começou a fazer o famoso Modelo T, eram todos pretos. Essa mentalidade ainda existe, por ser a fabricação de carros um processo caro. Mas as pessoas hoje estão acostumadas a escolher muitos opcionais. Não sei se chegaremos a ver esse tal “carro do futuro”, a indústria é muito conservadora.
Voltando à ideia de comunicação entre motoristas, a regra deveria ser “não seja ofensivo” porque podem te matar! Mas poderíamos mandar mensagens, e talvez esse aumento na comunicação mudasse algumas situações. Recentemente vi engarrafamentos no Rio e em Niterói que antigamente só aconteciam se havia um acidente ou algo do tipo. Agora é por simples falta de espaço para os carros, e cada carro com apenas uma pessoa. Levando em consideração essa ligação entre trânsito e hierarquia social, como fazer o brasileiro mudar para o ônibus, e os ônibus andarem melhor?
Nós costumamos encarar o trânsito como um problema insolúvel, mas na verdade ele é um problema localizado em certos horários e regiões. E o trânsito não funciona de forma linear. Se você quer diminuir os congestionamentos em 50%, não precisa necessariamente tirar 50% dos carros, talvez 15% baste. Isso é um problema solucionável amanhã, se você conseguir que um em cada cinco daqueles motoristas sozinhos se junte a outro veículo. Uma grande promessa para o trânsito é o iPhone, porque pela primeira vez temos computadores portáteis, em tempo real, com localizador geográfico. Podemos ser parte de um sistema, tanto emissor como receptor. E muitos aplicativos estão sendo desenvolvidos nessa direção. Um que mostra a empresa de car sharing mais próxima, que te conecta com alguém que possa te dar uma carona, ou indique quanto tempo você vai demorar no congestionamento. O problema é que o trânsito é um sistema autocorretivo. Quanto mais você o melhora, mais você atrai as pessoas. Então, no fim, você precisa procurar alternativas mesmo.
“O problema é que o trânsito é um sistema autocorretivo. quanto mais você o melhora, mais atrai pessoas a aderirem a ele. É preciso buscar alternativas”
No livro, você compara os humanos a insetos e diz que não teríamos trânsito se nos comportássemos como formigas ou abelhas. O que elas têm que deveríamos copiar ou nos inspirar?
Tem um tipo de formiga no Panamá, apenas para dar um exemplo, que muda de ambiente todo dia, muda de habitat completamente e tem que achar novas fontes de alimentação. Muda os ninhos, constrói essas grandes trilhas. Tudo isso sem mapas ou guardas de trânsito. E a eficiência dessas “estradas” é enorme. Claro que elas evoluíram por milhares de anos até serem capazes de fazer isso. Infelizmente o homem só dirige há uns cem anos [risos]. Mas elas têm esse tipo de inteligência coletiva que nos falta nas ruas. Engenheiros de trânsito gostam de falar de duas coisas: uma é otimização de um sistema e a outra é otimização individual, o que cada motorista acha melhor para si. Na Califórnia existe uma coisa chamada “rampmetering”, que consiste em fazer esperar um pouco quem vai entrar numa estrada que esteja com muito movimento. E isso melhora o fluxo. A pessoa pode se perguntar: “Mas por que devo esperar se o fluxo está bom?”. Mas a ironia é que o trânsito está andando justamente porque aquela pessoa parou. Ninguém quer abrir mão do seu tempo para ficar esperando naquele semáforo, mas, porque estão fazendo isso, o sistema todo flui melhor. Infelizmente, sem colocar esses aparatos tecnológicos, nós, humanos, não conseguiremos nos organizar para isso, porque nossos desejos individuais virão sempre antes da coletividade. As formigas têm essa total falta de egoísmo e trabalham para algo maior. É um sistema bem totalitário [risos], mas, em termos de projetar redes, há muitas lições pra aprender. Mas não somos obrigados a fazer isso, estamos acostumados a agir em grupos pequenos e a pensar em nós mesmos. Um exemplo clássico é chamado de “síndrome da faixa especial”. Você está parado no trânsito e existe, ao lado, uma faixa especial – para ônibus, por exemplo –, e você tem a impressão de que ela está sempre livre e é um desperdício, mesmo se passam ônibus cheios! Mas o fato é que fica difícil entender como esse sistema funciona a partir do ponto de vista individual.