Logo Trip

‘TELEVISÃO: A IMAGEM DA BESTA’

Por Redação

em 21 de setembro de 2005

COMPARTILHE facebook share icon whatsapp share icon Twitter X share icon email share icon

Primeira dúvida. Eu li direito? Li sim. O título acima é o que está escrito num outdoor não assinado sobre uma favela das mais miseráveis da Marginal do rio Tietê, em São Paulo. Duas outras dúvidas me vêm à cabeça. A primeira: a que Besta o cartaz se refere? É àquela besta, a besta mítica, a besta das bestas, o diabo, ou à besta quadrada que os programadores imaginam ser o espectador médio da TV brasileira? Segunda dúvida: quem teria gasto dinheiro tão considerável para erigir esse totem antitotêmico, essa mídia de massas antimídia de massas?
Mesmo sem resposta, as primeiras dúvidas logo se esvaem. Por mais que eu possa imaginar que o cartaz tenha sido produzido por alguma instituição evangélica, não é bem isso que importa. É outra a questão que me sobra dessa experiência fugaz de espectador urbano que assiste a uma instalação involuntária formada pelo acaso – afinal não é todo dia que uma frase dessas paira acima de uma favela daquelas. Se durante anos a TV foi vista por tanta gente como a manifestação de uma instância quase divina, uma entidade maior que a vida, não causa surpresa agora um movimento cada vez mais organizado querendo satanizá-la. Mesmo estando distante daqueles que vêem a TV como veículo de algum mal ou de algum bem absoluto, me confesso bastante intrigado pelas relações aparentemente es-treitas entre o excesso de mídia eletrônica e a onda de violência contemporânea.

Ver TV faz mal ou o mal vê TV?
O assunto já mereceu muita pesquisa de campo. A mais recente, coordenada pelo professor Jeffrey Jonhson, da Universidade de Colúmbia, em Nova York, observou os efeitos da exposição à TV num grupo de 700 pessoas durante os anos que as levaram da adolescência à idade adulta. A conclusão é assustadora. Quanto mais uma pessoa assiste à TV, mais violenta ela se torna. Simples assim. Numa entrevista à BBC, Jonhson diz literalmente que ‘alguém que passa três horas por dia na frente da TV é mais violento que alguém que fica só meia hora’. E mais: a pesquisa acredita que a violência independe da programação: não são apenas os programas explicitamente violentos que formam um espectador violento; são quaisquer programas. Para liberar o Hulk interior, para soltar a besta íntima, o espectador não precisa necessariamente acessar uma sessão kickboxer ou um Cidade Alerta. De acordo com a pesquisa, o nível de violência está associado ao tempo de exposição à ‘TV em geral’.
Adoro pesquisas. Nem por isso acredito que elas sejam o espelho isento de uma verdade absoluta. Pelo contrário. Sou adepto de um pensamento selvagem que acredita que o ‘dado concreto’ é a prova de uma intuição pessoal. A alegoria de um palpite. Não requer grande esforço acadêmico associar um excesso de ‘TV em geral’ a uma ansiedade em geral. E um excesso de ansiedade em geral a uma violência em geral. Pode até ser, sei lá, que a mistura de passividade física e hiperestímulo audiovisual que caracteriza a postura do ‘amigo da Rede Globo’ gere agressividade, de modo ainda não identificado pela ciência. Duvido. Algo me diz que a violência tem mais a ver com o conteúdo daquilo que os pesquisadores consideraram ‘TV em geral’. O que é a ‘TV em geral’? Um zapping rápido mostra que ‘TV em geral’, aberta, é programa de auditório, novela, filme hollywoodiano, publicidade, esporte de massa, noticiário e, agora, reality show. Com poucas exceções, é isso. E, se os formatos já não são muitos, há no conteúdo que eles veiculam uma mensagem quase única: a do culto ao sucesso.
‘Faça qualquer coisa para vencer’, dizem os novos reality shows. ‘Tope tudo por dinheiro’, dizem os antigos reality shows. ‘Lute até o fim pelo seu sonho’, dizem as apresentadoras infantis, juvenis e até senis. Também os pastores televangélicos, os esportistas midiáticos, os empresários de palco e, com honrosas exceções, quase todos os personagens da TV. Seria bonito, não fosse pelo detalhe de que, atualmente, o ‘sonho’ é quase sempre encarnado pela própria celebridade instantânea que o promove. E significa apenas fama e dinheiro.

O esterco da desigualdade
Não é preciso receber o espírito de McLuhan ou de Macunaíma para enxergar nessa apologia do sucesso uma ode à competição. E no excesso de competição, uma elegia à violência. Não que eu esteja defendendo algum puritanismo inocente. Sucesso é bom. É um direito. Eu quero. Você provavelmente também quer. O problema é a promoção desvairada de uma idéia de sucesso tão existencialmente rasa. O problema é a inviabilidade a longo(?) prazo de um modelo de convivência em que a maioria celebra o sonho de uma ínfima minoria. O problema é a propagação de uma ideologia tão individualista por meio de um veículo tão público. Sobretudo quando é semeada num terreno social como o nosso – desculpem o drama – tão profundamente fertilizado pelo esterco da desigualdade.
Que fique claro. A ponta desse dedo que tecla não quer fazer nenhuma acusação simplista à ‘TV em geral’. Nem à mídia em geral. A mídia não é a besta do apocalipse. Nem é uma entidade extraterrestre que desembarcou em Varginha e se espalhou pelo mundo. Que me desculpe Luis XIV, mas a mídia somos nós. Nós interligados. Mudança é possível. De canal ou de atitude.

PALAVRAS-CHAVE
COMPARTILHE facebook share icon whatsapp share icon Twitter X share icon email share icon

LEIA TAMBÉM