Cenário de umas das melhores ondas do mundo, vila portuguesa é reconhecida pela preservação, proteção do meio ambiente e geração de empregos
É quase meio-dia do último dezembro em Ericeira, vila turística situada a 35 quilômetros de Lisboa, em Portugal. Apesar dos oito graus Celsius, o mar de Ribeira D’Ilhas, uma das sete praias que compõem o paraíso natural no litoral do país, está repleto de surfistas que aguardam uma das ondas mais perfeitas da região.
Não foi preciso esperar muito. Cinco minutos depois, uma jovem dá duas remadas com os braços, posicionando sua prancha sobre uma onda de cerca de um metro. Em um movimento só, ela impulsiona seu corpo, fica em pé e tudo acontece muito rápido: rasga tranquilamente as águas até chegar à praia e é elogiada por sua professora de surf, Carina Duarte, de 29 anos.
Nascida e criada em Ericeira, Duarte surfa desde os oito anos e já venceu diversas etapas de campeonatos de surf em Portugal, como a Liga MEO Surf. Quando sua vila tornou-se uma Reserva Mundial de Surf (RMS), em 2011, ela passou a atuar também como professora do esporte para crianças e adolescentes, impulsionada pela grande procura da modalidade, seja no verão ou no inverno. “Crescer com um esporte é fantástico. Pode competir, mas não só para ganhar, ser o melhor, e sim para ganhar garra. O surf combina tudo isso. É um esporte ligado ao mar, e você sai descontraído mesmo que não tenha sido sua melhor onda. As crianças têm muita energia, então é ótimo gastarem tudo”, diz ela.
Ericeira foi a primeira praia da Europa a fazer parte do programa da ONG Save The Waves Coalition, dedicado a preservar e proteger paraísos do surf locais em todo o planeta. Apesar de existir inúmeras praias apropriadas para o esporte no mundo, apenas doze foram consideradas Reservas Mundiais de Surf. Estão espalhadas pela América do Norte, América Latina, Oceania e Europa. A praia Guarda do Embaú, em Santa Catarina, é a única no Brasil.
Para ser considerada uma reserva, a região precisa cumprir uma série de critérios: qualidade e consistência das ondas da zona de surf; características ambientais únicas do local; a importância das ondas para a cultura local; apoio e participação da comunidade; e, por fim, se é uma área de proteção prioritária para conservação. O título vem atraindo turistas e fortalecendo a relação dos moradores da vila com o mar.
“Ericeira é considerada uma reserva porque tem o fundo de pedras com uma larga costa, com ondas ótimas. Diferente do fundo de areia, que está sempre mudando, essa qualidade de ondas dura muitos anos”, explica Duarte.
Além de ser um prato cheio para os surfistas que buscam a onda perfeita, uma Reserva Mundial estimula uma lógica comunitária, estrutural e funcional às cidades que recebem esse título. E, nesse sentido, o meio ambiente é um dos protagonistas. Ou seja, o forte apoio da comunidade atrelado a uma visão de conservação. “Acredito que foi bom ter dado esse título para Ericeira, porque criou uma maior atenção, as pessoas têm mais cuidados, mantêm as praias limpas e cria-se um ambiente solidário nas vilas”, afirma.
Vivendo do surf
Ericeira é uma vila antiga, onde possivelmente passaram e se instalaram os Fenícios cerca de 1000 a.C. Segundo historiadores, o nome da vila portuguesa que é sede da Freguesia da Ericeira do Município de Mafra significa, na origem, "terra de ouriços", devido aos numerosos ouriços-do-mar em suas praias. No entanto, estudos mais recentes apontam o ouriço-cacheiro – o da terra, e não o do mar – como inspiração para o nome.
No último Censo, em 2021, a população de Ericeira era de 12 mil pessoas — o número pode quadruplicar em temporadas de surf, que vão de novembro e março, ou no verão. Muitos turistas, no entanto, acabam encontrando na cultura do surf uma oportunidade de trabalho. É o caso do shaper brasileiro Daniel Bartoli, 44 anos. Nascido em São Paulo, ele fez sua primeira prancha há 26 anos e chegou a ter a própria fábrica em São Caetano do Sul, mas decidiu fechar as portas do negócio e mudar para Portugal em 2014.
“O mercado não estava bom no Brasil. No início de 2014, vim para cá passear, conheci algumas pessoas e vi que havia uma possibilidade de trabalho. Alguns meses depois me mudei com minha esposa”, conta ele, após lixar perfeitamente o molde de uma prancha.
Há oito anos em Portugal e seis em Ericeira, Bartoli trabalha na fábrica de prancha Semente, a principal fornecedora de materiais para surfistas na região. A marca foi criada por Nick Uricchio e Miguel Katzenstein em 1982, tendo desempenhado um papel importante na evolução da história do surf português.
Praias de Ericeira
Segundo a administração do Município de Mafra, a consagração de Ericeira como uma Reserva Mundial de Surf é tida como uma homenagem às pessoas que viveram do mar e, ao longo dos séculos, tiveram a responsabilidade de preservá-lo. Ou seja, é transformar o oceano um patrimonio da humanidade.
“Essa responsabilidade envolve um trabalho coletivo, de entidades gestoras do território e, principalmente, da comunidade, associações locais, escolas de surf, empresas do setor e praticantes do esporte”, diz um trecho do manifesto elaborado pela prefeitura local. Confira as sete praias da reserva.
1. Pedra Branca
Localizada na ponta sul da Praia da Empa, foi apelidada com esse nome por causa de uma pedra submersa, de tom mais claro que as demais, localizada próxima de onde as ondas são dropadas pelos surfistas. Devido à rasa bancada do recife que fica exposto durante a maré vazia, é normalmente surfada desde a meia maré até a cheia. As ondas são regulares, consideradas perigosas e caracterizadas por estarem em uma zona de arranques rápidos, seguidos de um tubo até o inside (parte mais rasa do mar).
2. Reef
Continuando pela praia da Empa, encontramos uma onda que se chama reef. Ela é formada a partir de uma placa de recife muito plano que se desenvolve em terra e vai ficando mais funda durante o desenvolvimento da onda. Regulares e consideradas perigosas, as ondas são caracterizadas por estarem em uma zona curta e rápida, seguida de um tubo até o inside.
3. Ribeira D’Ilhas
Praia mais badalada da região, está situada num vale com praia de areia no centro, onde deságua uma ribeira, que funciona como um anfiteatro natural, ideal para realização de eventos de surf. Foi palco dos primeiros campeonatos de Portugal. As ondas são competitivas e chegam a percorrer até 200 metros de comprimento antes de chegarem na parte mais rasa do mar.
4. Cave
Com ondas poderosas, elas começaram a ser surfadas recentemente. É extremamente radical, tubular e arriscada por estar localizada a pouca profundidade e não ser conectada com a terra — ou seja, é recomendada para surfistas experientes e também indicado o uso de proteção.
5. Crazy left
Exposta ao vento norte, não é uma onda muito consistente em termos de qualidade, mas quando reúne condições ideais para o surf proporciona velocidade com várias seções de ondas e formações de tubos. Por estar localizada em uma zona de escoamento de água da baia, só recebe ondulações em condições acima dos dois metros.
6. Coxos
Localizada em uma paisagem que se mantém praticamente intacta desde os anos 70, a onda de Coxos é a que melhor representa os valores da Reserva Mundial de Surf, nos quesitos de preservação e proteção sustentável. O título nasceu a partir deste local. É sempre uma onda forte que apresenta diferentes ondulações, sendo ideal para tubos de longa duração.
7. São Lourenço
A última praia que integra a reserva, São Lourenço tem ondas que partem sobre um planalto rochoso, o que forma ondas rápidas e com muita massa de água, devido ao seu pico estar localizado a uma distância considerável da praia. É normalmente surfada na meia maré.
Créditos
Imagem principal: Guia de Surf da Ericeira / Câmara Municipal de Mafra
Fotos: Guia de Surf da Ericeira / Câmara Municipal de Mafra