Preso em uma cela, eu viajei por todo o planeta com minhas cartas, livros e colunas; minha liberdade são as palavras

POR LUIZ ALBERTO MENDES*

Nunca soube nada sobre liberdade. Apenas esse palpitar profundo, essa tensão e essa voracidade de viver contida. Fui campeão em comprometê-la e somente comecei a entendêla quando não mais existia. Foi assim, bem de repente mesmo. Até então liberdade era projeto pessoal que envolvia sexo, velocidade, armas, drogas e emoções violentas. Mas estava consciente da falta de algo. Algo que jamais entendi. Então confundi e quase me fi ndei. O primeiro livro lido já deixou dúvidas. Nos seguintes, a ignorância foi se confi gurando, as questões surgindo e o confl ito se instalando.

Nesse tempo eu era esponja a absorver o mundo. O ano era 1984 (coincidente ao Big Brother de George Orwell), e eu, depois de 12 anos aprisionado, era o primeiro presidiário do Estado de São Paulo a freqüentar uma faculdade. Franco Montoro era o primeiro governador eleito pelo povo do Estado depois de 20 anos de ditadura.

FOICE EMPINADA
De individualista e egocêntrico, fui para o outro extremo depois de estudar grandes inteligências da humanidade. Agora eu era marxista, coletivista e pensava no mundo como família. Na faculdade me juntei ao povo ligado ao Partido Comunista do Brasil. Lia tudo o que caía nas mãos, ávido por conhecer, participar. Estive nos dois comícios pelas Diretas Já, o do Anhangabaú e o da Sé. Ajudava as meninas do Diretório Central dos Estudantes da PUC-SP a distribuir A Tribuna Operária, jornal do PC do B. Mas meu maior trabalho era afastar os inoportunos. Naquele tempo, a rapaziada vivia com sexo na cabeça e na mão. Virgindade ainda era tabu. Encostar na bundinha das meninas enquanto elas tremulavam as bandeiras vermelhas com o martelo e a foice era a glória.

Meu comprometimento diluiu-se ao ser defrontado com a realidade. Abandonei tudo quando as coisas apertaram. Coloquei a perder a maior oportunidade de minha existência. Paguei caro por tamanha estupidez. Somente 20 anos depois sairia novamente da prisão.

Outro dia um amigo afirmou que não devo somente maldizer as prisões pelas quais passei. Aprendi muito nelas. Realmente, quando desafiado sempre me superei, e aquele espaço é absolutamente desafi ante. Como a fábula da esfi nge egípcia que exigia ser decifrada, caso contrário devoraria sua vítima. Evidentemente, tentei decifrar o enigma. E decifrar signifi cava expandir aquele pequeno ponto de liberdade estabelecido. Quando aprendi a ler e escrever, consegui os instrumentos de que carecia para esse trabalho.

De dentro daquela parca cela na penitenciária do Estado, eu me abria em leque para o mundo, por intermédio de cartas. Minha liberdade eram as palavras impregnadas de toda minha força e paixão por existir que eu remetia ao mundo. do. Viajava no bojo delas e conquistava pessoas de todo o Brasil. Tinha amigos em Cuba (tenho ainda), Portugal, Espanha, Estados Unidos e outros países onde brasileiros aportavam ou estrangeiros dominavam o português. Entrava na vida das pessoas com minhas letras. Tive várias famílias ao mesmo tempo. Correspondia-me com cerca de 40 a 50 pessoas simultaneamente. Passava noites respondendo cartas à luz de vela, clandestinamente.

Quando descobri que era capaz de ensinar o que sabia, então o ciclo se completou. Torneime o professor. Nas prisões, profissão é apelido. Depois, publiquei meu primeiro livro. Do livro surgiu a coluna na Trip. Memórias de um sobrevivente vende até hoje, está virando filme. A coluna está aí, íntima, viva, já vai para sete anos. Fui solto e então, por conta das amizades, dos livros, das palestras, consultorias e oficinas que fui desenvolvendo, das responsabilidades que fui assumindo, minha liberdade cresceu. Tem gente lendo livro meu, neste momento, em algum canto envolto em neve lá na Rússia, por exemplo. Lutei dois anos para conseguir meu título de eleitor. Votei com o maior prazer. Ali, na boca da urna, completei minha cidadania. No peito trazia acesa a esperança de que, se para a liberdade pessoal não há limites de expansão e crescimento, o espaço de participação cidadã e política seguiria os mesmos passos. E nós, brasileiros, expandiríamos essa nossa liberdade à sua inteira expressão, um dia...

* LUIZ ALBERTO MENDES, 56, autor de Memórias de um sobrevivente, pode escrever sobre o valor da liberdade com conhecimento de causa porque passou mais de 31 anos e 10 meses preso. Seu e-mail é lmendes@trip.com.br

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