O SOBREVIVENTE
Ele vivia triste, como triste são as pedras esverdeadas pelo musgo nos muros. Triste porque infeliz, como infelizes parecemos todos nós. Só que não escondia; não fugia. Era, não estava sendo. Fazia parte de sua natureza. Encarava tudo de frente. Sem esconderijos ou fantasias. Mesmo que apertado em sua angústia de ser. Todas as pessoas eram um monte de coisas. Ele só conseguia ser ele mesmo. Havia uma expressão de doçura pôr trás de seus olhos apertados. Tão enigmática, chinesa, que parecia deixar a vida por um fio.
Sentia-se humano sofrendo. A alegria, para ele, não fazia parte da condição humana, já que efêmera. Sentia-se melhor em hospitais ou prisões. A vida ali pulsava em ritmo mais verdadeiro. As pessoas doentes eram mais reais.
` Seus olhos eram secos. Vivia tranquilo em sua infelicidade. Buscava a solidão. As pessoas, paradoxalmente, ao tempo que fascinavam, cansavam. Não eram como ele, absolutamente. Sentia-se com cem anos e os outros com cinco anos de idade. Infantis em suas buscas desesperadas de fugir à solidão. Ele adorava estar consigo. Seu silêncio era cheio de vozes íntimas que o satisfaziam.
Ninguém o entendia; mas ele não tinha a menor ilusão de ser entendido. E era tão obvio que chegava a saltar para dentro de qualquer um. Todos que o circundavam percebiam sua densidade. Mesmo não sabendo como se aproximar, ficavam pôr perto. Era muito calmo em sua tristeza. Não expressava a fúria acumulada que lhe ia pôr dentro. Porque tinha que ser assim? Perguntava-se. Mas nem se dava ao trabalho de responder, era vasto demais. Sua base de poder era sua fragilidade. Sua permanente instabilidade.
Sofria sem suspiros, sem dor. Poderia se dizer que ele sofria sem sofrer. Apenas sofria de uma tristeza nostálgica que não precisava de sentido ou motivo. Pelo menos não para ele. Sua existência consistia de conteúdos que lembravam floresta úmida e fértil de chuva.
Pôr dentro era um livro de infinitas páginas. Assim cheio de uma substância palpável, algo feito de concreto e água, de mar e encantamento. Sim, oceano, desses pacíficos, atlânticos e índicos.
Triste como alguns blues de Eric Clapton. Um cantor, não importa se negro ou cego, mas longo na voz sai de sua boca. Garganta rouca, talvez Jagger a evocar angels e devlins. Ao tempo em que ritual apaixonado, assim Nirvana e Cobain in acústico. O primeiro cigarro após o café.
E era amado. Ó sim, ele era amado, principalmente pôr si mesmo. Particularmente porque não havia mentiras em si para si. Vivia encostado ao paredão, no limite. Mistério o circundava. O herói irreal, inverossímil.
Para quase todos representava perigo. Como uma cobra enrodilhada. Embora fosse tão manso como uma noite escura. Era uma longa busca que não procurava encontrar e sim sedimentar, acumular e consistir a soma de si. Uma cor violeta e seu perfume no ar...
E ele era o céu e todos os lugares também, era só fechar os olhos. Era um sino a badalar horas intermináveis, esparramando melancolia no ar. Havia um fogo, um crepitar, longo e avermelhado. Todos temiam o fogo. Ele o amava. Era digno o fogo em sua necessidade. A sua tristeza era cheia de paz. Uma paz assim como um pecado original, parecido com versos de Rimbaud e Baldelaire.
Sim, ele era triste, imensamente triste como flores murchando num vaso de cristal. Tão triste, mas tão triste que nem existia...
Luiz Mendes
19\07\2003
(quando completava 30 anos cumpridos e 50 anos de idade, sem muitas ilusões de ainda sair vivo da prisão.)