Na zona leste de São Paulo, uma vila abriga ganhadores de casas próprias no baú da felicidade
Na zona leste de São Paulo, uma vila abriga vários antigos ganhadores de casas próprias nos sorteios do Baú da Felicidade. Como não convencemos o Silvio santos original a ir até lá dar uma voltinha, levamos seu clone
No fim da década de 60, seu Irineu Couto atravessou 380 quilômetros, da cidade de Chavantes até São Paulo, para mudar de vida e cuidar da saúde. O trabalho no plantio de café o tinha deixado com a perna doente. Mudou-se com a mulher, Alvina, e duas filhas. A renda, pouca, vinha de bicos, o orçamento era apertado e, mesmo assim, Irineu apareceu em casa com um carnê do Baú da Felicidade – para desespero de dona Alvina. “A gente sem dinheiro e você gastando com isso, Irineu”, reclamava a mulher, talvez ressabiada pela fama de exploração dos pobres que havia colado no Baú. Bastaram dois meses para chegar um telegrama avisando: eles haviam sido sorteados com uma casa! Irineu foi ao programa de televisão e garantiu a nova residência no então longínquo bairro de Itaquera, na zona leste. Quem conta é dona Conceição, uma das filhas do casal: “Naquela época, ninguém acreditava que o Silvio Santos dava casa”, lembra. “A gente mostrava: ‘Olha aqui, a gente ganhou mesmo’. Foi uma bênção.”
“Toda vez que minhas filhas pedem pra mudar de canal eu digo: ‘Se não fosse o silvio santos, a gente estava morando debaixo da ponte’ ”, afirma dona Neide Marques, outra premiada
Impulsionada pelos ventos da boa fortuna, a família mudou-se para o novo lar e descobriu que iria morar num bairro de sortudos. Vários dos primeiros moradores também haviam sido premiados pelo Baú da Felicidade. Há 50 anos, a empresa vende carnês que possibilitam concorrer aos sorteios de casas nos programas do Silvio – cerca de 4 mil foram entregues até hoje. .
Irineu ganhou a dele na Vila Silvio Santos, como ficou conhecida a pequena rua de casas geminadas, cercada de mato por todos os lados e distante 21 km do coração de São Paulo. Nessa época, a conexão com o centro era uma única linha de ônibus, que ligava Itaquera ao Parque Dom Pedro 2º. A água vinha de uma mina natural, algumas quadras abaixo, e a energia elétrica demorou a chegar. Depois de instalada, a eletricidade era compartilhada com quem se mudava para lá. Não havia mercado por perto. As compras eram feitas dentro de um ônibus que passava por lá carregado de mercadorias.
Portas da esperança
Edificada pela Cia. Líder Construtora, poucos compraram casa num bairro tão distante. Em 1967, Silvio, por meio da B. F. Utilidades Domésticas Ltda. (o nome oficial da empresa do Baú), adquiriu 41 delas. Nesse mesmo ano, a então adolescente Angela Reis foi surpreendida na cozinha da casa em que os pais moravam quando lavava a louça. Durante a tarefa do lar, ela recebeu a visita do apresentador – a única ocasião em que ele foi a uma das casas da vila. Silvio batia ali o martelo na compra (cada unidade valia 6 mil cruzeiros novos – o que, corrigido, equivale hoje a R$ 8,4 mil). Bom vendedor que é, logo perguntou a Angela: “Você comprou o meu carnê? Olha que você pode ganhar uma casa, hein?”. A da família de dona Angela não foi dada por Silvio, mas comprada pelo pai dela. Quando ela se casou, em 1978, adquiriu a de número 25, quase em frente ao antigo lar e onde reside até hoje.
Duas casas para a esquerda, mudaram-se outros dois felizardos vencedores do sorteio para o número 23. Dona Anita e seu Manoel Moraes levaram dois anos para deixar a casinha em que viviam, em Mauá, e se mudar para Itaquera. Isso porque a vila era longe do centro e a infraestrutura do bairro era precária. Manoel continuou fazendo fé no carnê do Baú. Assim, comprou grande parte dos lençóis, louças e panelas da casa – trocando o valor pago por mercadorias no fim das parcelas. Anita apostava na Tele Sena. Ela é uma das duas premiadas que ainda moram lá. O marido já faleceu. Com os vizinhos, compartilha o carinho por Silvio Santos: “O dia em que esse homem morrer… Ai, meu Deus, sei não, acho que o mundo para”.
“Toda vez que minhas filhas pedem pra mudar de canal eu digo: ‘Se não fosse pelo Silvio Santos, a gente estava morando debaixo da ponte’”, afirma dona Neide Marques, outra premiada que ainda mora na vila. A casa sorteada foi motivo de controvérsia na família do marido, Daniel. Quem comprou o carnê foi a mãe dele, dona Glória, que pediu para colocar no nome do filho. Daniel foi sorteado e levou a casa, onde a mãe foi morar até o premiado se casar e constituir a própria família, que passou a residir no lar. A mãe de Daniel teve de deixar o local – a contragosto dos outros filhos dela, que queriam que ela continuasse vivendo lá. O irmão de Silvio, que trabalhava na TV com o apresentador, até ofereceu uma proposta tentadora aos então noivos: “Ele disse que mobiliava a casa inteira se a gente fosse ao programa Namoro na TV, mas eu não quis não”, revela dona Neide.
Dona Glória gostava muito daquela vizinhança. Tanto que, alguns anos depois, foi morar com a filha Carolina Marques numa casa comprada por outro dos filhos na mesma vila. O senso de comunidade da vila era reforçado por seu Irineu. Ele passava o mês de junho juntando galhos de árvores para fazer uma enorme fogueira para a festa de São João. Seu Irineu também tinha a mania de recolher guarda-chuvas quebrados do meio da rua para consertar e deixar à disposição dos vizinhos. As canecas de café dos moradores levavam a assinatura dele. Eram comuns os pedidos para que ele fizesse alças para as latas de extrato de tomate ou leite condensado, que se tornavam xícaras improvisadas. “Era um tempo muito bom”, recorda Carolina. “Era como naquela música: ‘Moro onde não mora ninguém/ Onde não passa ninguém/ Onde não vive ninguém/ É lá onde eu moro e eu me sinto bem’.”
“Seja lá como for, Silvio Santos nos deu nossa casa”, afirma Carolina. “Ele nunca viu a gente nem sabe se estamos vivos, mas a gente agradece.”
Dançando e rodando!
A relação da família de seu Irineu com Silvio Santos não parou na casa que ele ganhou. As netas também brilharam no programa do apresentador. Fabiana estava entre as alunas que foram dançar no programa em que escolas disputavam entre si. A dela ganhou e a menina levou uma bicicleta. “Veio todo mundo da escola até minha casa. Todos me aplaudiram, foi uma festa.” Adriana, que estudava no mesmo colégio, não quis dançar, mas participou da brincadeira em que o participante abria latinhas para concorrer a uma bicicleta. Não deu sorte e tirou uma das latas de onde saltava uma cobra. Saiu do programa do Silvio com uma boneca como prêmio de consolação.
A família, como a maioria dos primeiros moradores premiados pelo Baú, já deixou a vila há algum tempo. Hoje, a paisagem é bem diferente de quando se mudaram. A rua, que se chamava Passagem Particular, teve o nome mudado para Jornalista Sebastião Rodrigues. Aquele pedaço de Itaquera agora é conhecido como Cidade Líder. As residências geminadas foram tão reformadas que mal se enxerga a arquitetura original – mas valorizaram: em bom estado de conservação, uma casa ali sai por cerca de R$ 120 mil.
Não mais cercada por mato, a vizinhança é um apinhado de construções de concreto, todas muito próximas umas das outras, formando um conjunto irregular. Ficaram as lembranças da vida que mudou graças ao acaso. Dona Conceição recorda como o pai agradecia toda noite pela casa, quando rezava. “Ele dizia pra minha mãe: ‘A gente não tem que pedir nada não, Alvina, só agradecer. Pra que mais? Eu, quando for, já vou deixar minha casinha’.” Se Silvio Santos ganhou a fama por alegrar as tardes de domingo nos lares brasileiros, para os moradores da vila em Itaquera ele fez algo mais. “Seja lá como for, ele nos deu a nossa casa”, afirma Carolina. “Ele nunca viu a gente nem sabe se estamos vivos, mas a gente agradece.”