Ser negro no Japão (também) é foda

por Antonio Prada
Trip #286

Invisíveis no que costumamos ler ou ouvir sobre o país, os japoneses de etnia mista, especialmente de origem africana, sofrem preconceito desde a escola

Início da noite no cruzamento mais movimentado e fotogênico do mundo, em Shibuya, no centro de Tóquio. Arranha-céus de última geração, trens suspensos, néons dignos de Blade Runner, sons e músicas misturados ao redor e telas gigantes de ultradefinição compõem a paisagem. Em uma das telas, surge Naomi Osaka, com trajes brancos, olhar fulminante e o slogan “Mude o mundo. Sem mudar a si mesma”. É uma campanha publicitária de marca esportiva celebrando o momento da tenista, uma das estrelas do circuito mundial e representante do Japão na Olimpíada de Tóquio, que acontece a partir de 24 de julho. Naomi, 22 anos, é a mais global e bem-sucedida atleta japonesa de todos os tempos. Mais: ela representa uma pequena parcela da população do país, de etnia mista, que cresce a cada ano e coloca em xeque o estado homogêneo e conservador nipônico.

“Na escola, durante uma brincadeira de retirar papéis de uma caixa, as outras crianças diziam que eu não podia porque minha mão era suja”
Ugawa Aja Maica, filha de mãe japonesa e pai afro-americano

Naomi nasceu em Osaka, filha de pai haitiano e mãe japonesa. É, portanto, uma hafu, termo que deriva da palavra inglesa half (meio) e rotula filhos de casamentos entre japoneses e estrangeiros. Traduzido para a cruel realidade do cotidiano do país, hafu significa ser estrangeiro no seu próprio país. E o Japão não costuma ser condescendente nesse tema.

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Por gerações, os membros de “sangue misto” da sociedade japonesa são evitados ou mantidos a distância, principalmente as pessoas de pele mais escura. A tenista mudou-se aos 3 anos para os EUA, mas nunca abandonou as raízes, apesar de atualmente, por motivos óbvios, ter dificuldade em se expressar em japonês. Vieram os títulos, a fama. A discriminação, no entanto, continua implacável, bastam mínimas oportunidades. Em uma campanha publicitária de um dos principais patrocinadores, por exemplo, Naomi foi propositalmente “clareada” em uma animação, que foi retirada do ar depois de protestos à ofensa.

A vida de muitos

Histórias semelhantes podem ser contadas por outras personalidades proeminentes de etnia mista, como o jogador de basquete da NBA Rui Hachimura e o velocista Abdul Hakim Sani Brown, que também representarão o país na Olimpíada, e a ex-miss Japão, Ariana Miyamoto, que, em 2015, foi a primeira afrodescendente a ganhar um concurso de beleza local. Eles tentam driblar e muitas vezes até discutir a discriminação através da profissão e da exposição exacerbada, mas a grande maioria dos japoneses de sangue misto enfrenta obstáculos que põem em risco a própria sobrevivência.

“Vou conhecer o mundo e lutar contra o preconceito racial e de gênero”
Ugawa Aja Maica

Em um fim de tarde de inverno rigoroso em Tóquio, a Trip encontra Nuushi Harada em um café no centro da cidade. Tímido, Nuushi, 
22, é filho de pai japonês e mãe jamaicana. Nasceu em Nagano, no centro-oeste do Japão, e mora em Chiba, a uma hora de trem da capital. Ele tenta empregos como designer, mas, por enquanto, trabalha meio período em um restaurante. A sua história tem o mesmo roteiro da de outros hafu: o primeiro contato com o preconceito se dá na escola. “Quando estava no ensino fundamental, percebia que era diferente, porque eu era negro e tinha cabelos encaracolados. 
Dos 6 aos 12 anos, eu não gostava da minha cor 
nem do meu cabelo. 
As pessoas zombavam e davam risada”, conta.

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A estudante Ugawa Aja Maica (pai afro-americano e mãe japonesa), 17, relata os mesmos obstáculos. “Sofri preconceito desde pequena. Os amigos nunca me incluíam nas atividades. Me sentia muito excluída e não entendia o porquê. Uma vez, na escola, durante uma brincadeira de retirar papéis de dentro de uma caixa, vivi uma situação que marcou a minha vida. Quando chegou a minha vez de colocar a mão na caixa, as outras crianças diziam que eu não podia fazer isso porque a minha mão era suja”, lembra Maica, que nos encontrou no meio da multidão de Shibuya Crossing, depois de uma viagem de duas horas de trem desde Kanagawa, onde nasceu, reside e estuda.

“Quando estava na escola, percebia que era diferente, porque eu era negro e tinha cabelos encaracolados. As pessoas zombavam e davam risada”
Nuushi Harada, filho de pai japonês e mãe jamaicana

Segregados no início 
da vida escolar, Nuushi e Maica tiveram pouquíssimos amigos, quase todos também mestiços. E ambos sofreram (e ainda sofrem) a discriminação com pouco ou nenhum diálogo com os pais. “Não queria incomodá-los, deixá-los preocupados. Como eles nunca tiveram esse papo comigo, também não falava nada. A conversa só veio muito tempo depois. Ficaram muito bravos, e deixaram claro que isso acontece, e muito, no Japão”, relata Nuushi.

Para Maica, até hoje, o assunto é tabu em casa.  Quando indagada sobre as razões, fecha o sorriso e dispara:  “Nunca senti vontade de falar sobre isso com os meus pais. Eles também nunca tocaram no assunto. Sempre falava com amigas, às vezes durante horas por telefone”.  
Apesar da ausência de diálogo, Emiko, a mãe de Maica, tomou uma decisão que mudou a vida da filha na escola. Na primeira reunião de pais do ensino médio, ela levantou-se na frente de todos, pediu a palavra e disse: “Minha filha tem um tom de pele e cabelo diferente das outras crianças, mas isso é o que faz dela única. Peço gentilmente que vocês sentem e conversem com 
os filhos sobre isso”. Desde então, não houve mais nenhum problema.

Os constrangimentos e ofensas não têm limite nas ruas do país, no entanto. Sobram histórias de interpelações policiais e agressões. “Uma vez, fui abordada por um homem que disse que este país não aceitava negros. Vocês representam um perigo, ele gritava. Não merecem este país”, recorda Maica, sublinhando que atitudes como essas não a abalam atualmente. “Aprendi a suportar e a me apoiar nos verdadeiros amigos, aqueles que me amam. Além do mais, tenho muito orgulho de ser japonesa e da minha cor.”

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Nuushi também busca o conforto de amigos e diz que já não sente tanto preconceito, mas enxerga na sociedade japonesa a reafirmação constante da raça pura e branca em várias situações. “Na disputa por um emprego em lojas de shoppings, por exemplo, dificilmente um mestiço terá alguma chance. Além disso, são comuns ataques e ofensas contra etnias fora da tradição homogênea do país em várias situações do cotidiano. Um exemplo é a constante abordagem policial a negros nas ruas da cidade.” Nuushi também é DJ, adora arte e sonha com um futuro em que não existam fronteiras: “Sei que hoje a diversidade ainda é um tabu no Japão, mas acredito que isso vai mudar”.

O direito de nascer

A luta pela diversidade é uma das obsessões de Joe Oliver III, 37, filho de pai afro-americano e mãe japonesa. Nascido em Yokosuka, cidade onde fica a base naval dos Estados Unidos, Joe viveu o lado mais perverso de ser um mestiço no Japão. Sentado à mesa em uma casa de chá no alto de um dos novos arranha-céus da cidade, o ex-modelo, que trabalha na operação comercial da NHK (TV pública japonesa), se emociona em vários momentos durante a conversa. Fala inglês perfeitamente, mas pede para que a entrevista seja em japonês e, assim, consiga traduzir nos mínimos detalhes e sem retoques a história de sua vida – relato que apresentamos fielmente em um depoimento no final desta reportagem.

“Sou japonês e sou otimista. As novas gerações vieram para ficar”
Nuushi Harada

“Nasci no Japão, mas não tenho cidadania. Em 1982, crianças nascidas de pai estrangeiro com mãe japonesa não podiam adotar a cidadania. Minha mãe tentou por todos os meios me registrar, mas teve o pedido negado. Ela acabou indo até o consulado americano, e, como meu pai era militar, na base naval, solicitou uma certidão de nascimento dos Estados Unidos. Ou seja, a mulher não tinha esse direito, talvez como uma forma de punição por se relacionar com um estrangeiro. Nasci, cresci e vivi no Japão, me considero japonês, mas tenho cidadania americana”, desabafa.

A partir de 1985, quando o Japão ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, a lei de nacionalidade foi alterada para permitir que mães e pais passassem sua cidadania japonesa para seus filhos. A norma, no entanto, ainda é condicionada pelo “sangue” que corre nas veias, e não pelo local de nascimento, como ocorre em muitos países. O Japão tampouco permite a dupla cidadania.

“Não tinha amigos e a violência só aumentava. As agressões começaram a vir também de adultos, que jogavam leite, ovos e até urina em mim”
Joe Oliver III, filho de pai americano e mãe japonesa

Entre sangue e cultura, as vozes mais conservadoras da sociedade têm uma lógica para excluir estrangeiros e as “impurezas” que eles carregam. Não existe um símbolo mais poderoso dessa impureza do que a chamada mistura de sangue. A situação fica ainda mais crítica porque o país não tem lei que proíba a discriminação racial, étnica ou religiosa. Apesar do cenário desfavorável, Joe, Nuushi, Maica, Naomi, Rui, Abdul, Ariana e milhares de mestiços no Japão (nascem cerca de 40 mil a cada ano) acham difícil manter os velhos mitos de sangue e cultura por muito tempo e sonham com mudanças mais amplas na sociedade japonesa.

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“O país tem uma mente fechada, não tem interesse em desvendar novas culturas, tem grande dificuldade em aprender com o mundo lá fora”, analisa Maica, que é fã de Lady Gaga, está estudando inglês e quer ser aeromoça. “Vou conhecer o mundo e lutar contra o preconceito racial e de gênero”, diz, subindo o tom de voz.  “Sou japonês e sou otimista. As novas gerações vieram para ficar”, celebra Nuushi, cabelos encaracolados ao vento, antes de se despedir e se integrar à multidão do bairro mais movimentado de Tóquio.

Joe Oliver III

O afrodescendente faz um perturbador relato de sua rotina em Tóquio

“Até os meus 7 anos, nunca tinha sofrido qualquer tipo de discriminação. Quando entrei na escola pública, no entanto, começou o pesadelo. Todos me chamavam de estrangeiro, e eu não entendia o que isso significava, já que havia nascido no Japão. Na primeira semana de aula, dos 150 alunos, 100 me mostravam o dedo do meio e riam. Eu achava engraçado, não sabia o que significava. Um dia, cheguei em casa e repeti o gesto para minha mãe. Ela ficou muito brava, disse que eu não podia fazer isso e explicou que era algo ofensivo.

Uma semana depois desse episódio, fui chamado de ‘negro’ pela primeira vez. Em casa, minha mãe tentou me explicar o que isso significava e me mostrou a série de TV Roots [Raízes, também exibida no Brasil], baseada na história da família do escritor Alex Haley. O protagonista, Kunta Kinte, é sequestrado em sua aldeia africana, vendido como escravo e levado para a América. Descobri nesse momento a história da minha raça.

O bullying começou a ser diário. Apesar disso, eu tentava fazer amigos, me aproximava dos outros alunos. Mas eles me chamavam de negro. Eu chorava, sentia muita tristeza. No segundo ano, depois de um dia de aula, um grupo de meninos de 12 anos me cercou em um parque e começou a me bater. Outras 20 crianças estavam no local, apenas assistindo.

Voltei para casa chorando e minha mãe me repreendeu: ‘Não sinta raiva de você mesmo por voltar chorando todos os dias da escola’. Fiquei ainda mais irritado, peguei uma faca e saí com vontade de matar aquelas pessoas. Cheguei no parque com a faca, e os meninos começaram a rir. Minha mãe apareceu na sequência junto com o namorado e dez outros militares americanos da base aérea que ficava ao lado. Me segurou, tirou a faca e gritou com os meninos.

Eles inventaram desculpas e acabaram pedindo perdão. Eu, no entanto, não conseguia perdoá-los e queria esfaqueá-los de qualquer maneira. Não tinha nenhum amigo e a violência física só aumentava. Comecei a ser espancado também na vizinhança. As agressões começaram a vir também de adultos, que jogavam leite, ovos e até urina em mim. Me deixavam sem roupa. Não me lembro muito bem de várias situações, mas posso ter sofrido abuso sexual.

A pouca ajuda que tive naquela época foi de militares americanos e membros da Yakuza do bairro – da qual o namorado da minha mãe fazia parte. Foi a partir de uma intervenção dele junto aos vizinhos quando minha mãe estava no hospital, vítima de um câncer, que os espancamentos cessaram.

Dos 10 aos 18 anos, convivi com as agressões verbais, o tempo inteiro. Eu sempre chorava. Durante esse período, comecei a praticar caratê. Passei a ter mais confiança, cheguei a obter a terceira colocação em um campeonato nacional. Na vida pessoal, porém, ainda era muito frágil. Tomei uma decisão importante no primeiro ano do colegial: escolhi uma escola onde os membros dessas gangues não queriam estudar. Foi a primeira vez que consegui encontrar um amigo, também mestiço.

Mas minha história começou a mudar à 1h da manhã do dia 18 de abril de 2000, quando minha mãe faleceu depois de outro câncer, e de um período grande de internação. Tomei consciência de que eu tinha de tomar as rédeas da minha vida. Minha mãe, no entanto, tinha deixado uma semente. Um ano antes, ela acreditou que eu poderia seguir a carreira de modelo. Mesmo sem dinheiro, chegou a tirar 2 mil fotos minhas e enviou duas delas para uma agência. Acabei virando profissional. Descobri que sozinho poderia vencer.

Fiquei forte com o caratê. Fiquei forte com a morte da minha mãe. Passei a enfrentar o bullying de cabeça erguida, buscando inclusive a possibilidade de revanche com os outros garotos que haviam me espancado. Algo que
felizmente nunca se concretizou. Sabia que, para mudar essa história, seria um dia de cada vez.

Como modelo, saí em revistas de alcance nacional e as pessoas começaram a me olhar de maneira diferente. Quem antes me chamava de negro passou a querer tirar fotos comigo, ser meu amigo. Eu falava que tudo bem, mas o ódio que eu sentia nunca desapareceu. O bullying foi diminuindo, até desaparecer. Minha vida, então, mudou. Desde que estou em Tóquio, não tenho sofrido muita discriminação, mas percebo que ela existe com outras etnias, especialmente coreanos e chineses.

O Japão não conhece a diversidade, mesmo em um mundo globalizado. Ainda me abordam como estrangeiro, mas não me sinto incomodado. Claro que tenho trauma pelo que vivi, mas olho para a frente. Não me vejo simplesmente como um japonês. Ou um americano. Me vejo como um ser humano que não depende de uma nacionalidade para viver.”

Após o encontro com a Trip, Joe foi abordado pela polícia duas vezes em dois dias consecutivos, na porta de casa, no bairro de Hiroo, em Tóquio. Pediram documentos, revistaram— no e perguntaram onde estavam as drogas.

Créditos

Imagem principal: Gui Martinez

Produção AKIRA MATSUI Realização BMAD TOKYO

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