A pouco mais de um ano da estreia do surf na Olimpíada de Tóquio, cinco brasileiros percorreram 6 mil quilômetros atrás das melhores ondas do Japão
"É uma situação que nunca vi no Brasil”, avisa Rafael Mellin. “A gente passava por um trecho da costa de 10, 20 quilômetros, por umas dez praias diferentes e todas tinham pelo menos umas 50 pessoas surfando ao meio-dia, em uma quarta-feira nublada, de onda ruim. Fiquei chocado como os caras estão fissurados em surf.”
A pouco mais de um ano da estreia do esporte nos Jogos OIímpicos de Tóquio, Mellin foi ver de perto como é pegar onda no Japão para Mares do Oriente, série ainda inédita do Off, canal que ajudou a criar e para o qual já dirigiu uma penca de produções. Para a empreitada, recrutou o surfista brasileiro de ascendência japonesa Dennis Tihara (que disputou o circuito local em 2006), o fotógrafo brasileiro especializado em surf Pedro Gomes (que mora há 18 anos no Japão e fez as vezes de guia do grupo), além do diretor de fotografia Gustavo Ferolla e do cinegrafista Erick Proost, que registraram a trip. Durante mais de 30 dias, percorreram 6 mil quilômetros e mais de 12 províncias do Japão, com uma uma prancha debaixo do braço e uma ideia na cabeça.
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“Existe uma cultura de surf bem forte no Japão, primeiro pela quantidade de picos que eles têm”, conta Pedro. “A gente correu por um mês o litoral do oceano Pacífico e não fez nem um quinto das praias”, diz Rafael. “O país é muito rico em surf, não achei que fosse ter tantas opções”, completa. E há surfistas para tanta onda: estima-se que o Japão tenha 1 milhão deles.
Pé na estrada
A viagem começou por Chiba, província onde Pedro mora, a cerca de uma hora e meia de trem de Tóquio. “É a meca do surf no Japão, onde acontecem os campeonatos importantes e onde será a Olimpíada”, diz o fotógrafo. Mas os japoneses vão ter que remar contra a maré: “A competição [que acontecerá entre julho e agosto] não será numa época boa de onda. Cogitaram fazer uma piscina de onda artificial”, diz Dennis. A ideia, no entanto, foi descartada e a informação oficial é de que a competição será no mar. Mas a piscina de ondas artificiais de Tóquio não decepcionou: “A onda é irada, é parada, curta. Você vê o trem passando, os prédios atrás, ali, no meio da cidade”, diz Dennis. Da capital, visitaram a região litorânea de Shonan. “É a surf city mais famosa no mundo que quase não tem onda”, diz Pedro. Shonan pode não ter onda, mas é o centro japonês do surfwear. Ali perto, na península de Izu, foram recebidos por Masatoshi Ono, lenda do surf local.
Os brasileiros pegaram a estrada rumo ao sul, onde estão vários picos com difícil acesso. Não são todos os lugares que têm placas em inglês; em outros, a internet não funciona tão bem. Era a época dos tufões e, mesmo não sendo o ápice da temporada, foram recompensados com as melhores ondas da viagem. “Levou 18 anos para eu ter esse conhecimento local, saber chegar ao lugar certo e falar com as pessoas certas”, conta Pedro – com exceção das praias mais conhecidas, a série não vai identificar aquelas protegidas pelos locais.
De praia em praia, entrevistaram atletas profissionais, mas também pescadores, agricultores e até um monge surfista que hospedou o grupo em seu templo. “A gente ouviu desde o moleque de 17 anos que é o fera e está começando a pegar onda profissionalmente até caras que têm mais de 70 anos e que foram os pioneiros”, diz Rafael.
A história do surf no Japão, contam, ainda não foi passada a limpo. Os precursores teriam começado a surfar na década de 50, usando pranchas emprestadas dos marinheiros americanos, que mantiveram bases militares no país após a Segunda Guerra Mundial. “Acho que por muito tempo eles foram importadores, consumidores do mercado de surf, principalmente da Austrália e dos Estados Unidos. Mas, com os anos, o Japão começou a ter a própria identidade no surf”, opina Pedro.
DNA japonês
O país hoje é conhecido pela qualidade de seus wetsuits. “Eles produzem os melhores do mundo. Têm uma tecnologia de borracha superelástica e que esquenta superbem. Japonês tem aquela coisa do perfeccionismo”, diz Pedro. “É o único lugar que faz [wetsuits] sob medida, tudo costurado à mão, com materiais que só eles têm”, conta Rafael.
Na areia, chamou a atenção dos brasileiros a higiene dos japoneses. Os surfistas vão até o mar de chinelo e o deixam em um lugar onde a água não alcance. “Quando saem do mar, botam o chinelo e voltam com o pé limpo até o carro”, conta Dennis. A prancha também não encosta na areia. Na saída da água, usam uma espécie deck para colocá-la no chão. “É realmente um método japonês. Você não vê isso no Brasil”, completa o surfista. O carro é totalmente preparado para o surf. A maioria são vans que têm cama e um chuveirinho de água quente. “Os caras montam uma estrutura inteira para viver o estilo de vida do surf. Têm uma casinha na traseira do carro. É quase como se morassem ali”, diz Rafael.
Na água, a calmaria domina: “Acho que é bem mais tranquilo tu surfar num mar com crowd no Japão do que em qualquer outro lugar do mundo”, conta Pedro. “É uma parada mais calma, mais serena, são raras as vezes em que você vê um japonês que vibre depois da onda, que tem aquela garra de vencer do brasileiro”, analisa Dennis. “A densidade populacional do Japão é uma das maiores do mundo. Eles tiveram que aprender a conviver em comunidade, em harmonia. Não tem espaço para o cara ser individualista, egoísta”, contextualiza Rafael. “Entrevistamos 30 pessoas e todas mencionaram que o japonês perde com isso muito da sua identidade, de falar o que pensa, de poder gritar, de ser expansivo. Eles ficaram realmente retraídos porque a vontade da vizinhança, da sociedade vem primeiro. E no surf é igual: o cara chega quietinho, vai para água, entra na fila, fica em um canto”, completa o diretor.
Essa serenidade típica dos japoneses entre ondas convive com um forte territorialismo, que cumpre regras específicas: “Uma das coisas que mais me impressionou é que, apesar de serem educados, há um localismo muito brabo. Talvez o mais brabo que já vi no mundo. Pior que o do Havaí, onde é limitado a meia dúzia de lugares, e muito pior que o do Brasil. Nunca vi essa prática na quantidade de lugares que se tem no Japão”, diz Rafael. “Como visitante, em qualquer lugar do mundo, você chega mais de cantinho, dá bom dia, faz a fila e tudo certo. Mas dá uma, duas horas e o mar, em teoria, é de todo mundo. No Japão, a estrutura hierárquica é surreal, o cara mais velho ou o mais respeitado pega todas as ondas mesmo e ninguém fala nada.” Em Chiba, os brasileiros tomaram uma chamada por não terem pedido permissão aos locais para filmar. Como um deles era da prefeitura, tiveram que ir lá preencher um formulário. Mesmo com orientações de Pedro, o protocolo que tiveram que cumprir era “inacreditável”.
“Já fui a mais de 30 países pegar onda ou filmar. E o Japão é o número 1 da lista em dificuldade de logística e de contornar o localismo”, completa Rafael. Em algumas das praias, o surf rola sob a sombra da Yakuza. “É algo velado, que não se fala abertamente”, diz o diretor.
Nova geração
Mais do que um lazer, o surf também representa um estilo de vida alternativo no Japão. “Quem está em Tóquio, Kioto, nas grandes cidades, fica imerso no trabalho 12, 14 horas por dia. Mas o cara que resolve viver no litoral quer trabalhar em um restaurante por cinco horas e pegar onda o dia inteiro”, conta Rafael. “E, pelo que a gente entendeu, está crescendo esse fluxo de pessoas deixando a cidade para uma vida mais tranquila.”
A Olimpíada tem ajudado a desconstruir o estereótipo do surfista que não quer nada. “Ela ajudou a difundir o surf como esporte, não só como uma curtição”, diz Pedro. O fotógrafo conta que o governo usou o surfista japonês Hiroto Ohhara, segundo melhor japonês do circuito e que atualmente disputa o World Men's Qualifying Series (WQS), como garoto-propaganda em um campanha de incentivo ao pagamento de imposto de renda.
Além de Ohhara, outro destaque do surf local é Kanoa Igarashi, atualmente o único japonês a disputar o campeonato mundial (terminou 2018 na décima posição). “A nova geração está sendo inspirada por ele”, diz Dennis. Filhos de japoneses, Igarashi nasceu e cresceu nos EUA, mas passou a representar o Japão no ano passado, de olho na Olimpíada. Em setembro passado, ele ajudou o time japonês a conquistar uma medalha de ouro no Urban Research (UR) ISA World Surfing Games, o que teve ampla repercussão na imprensa japonesa. “Tem uma geração boa vindo”, diz Dennis. Praias, ondas boas e surfistas o Japão tem de sobra.
Créditos
Imagem principal: Pedro Gomes
Fotos: Pedro Gomes