Sem olhar para trás

Pedrão Preto sempre viveu sem amarras: foi juiz de surf pioneiro e trabalhou no garimpo

Pedrão acordou cedo e, às nove da manhã, já surfou, varreu o chão do quiosque, limpou as mesas de plástico, colocou quatro cadeiras em cada uma, ajeitou guardanapos e recarregou as bisnagas de mostarda e ketchup. É verão e a praia Grande, a preferida da emergente classe C do vale do Paraíba, lota rapidamente. Os turistas pedem, ansiosos, cerveja, fritas e filezinho de aperitivo... Pedrão, com elegância, atende a todos. Mas o que nem você, leitor, nem os impacientes fregueses sabem é que aquele senhor de 65 anos que serve as mesas não tem apenas uma história. Ele tem biografia.

Conheci Pedro Lourenço da Silva, o Pedrão Preto, ali mesmo, no canto esquerdo da praia Grande de Ubatuba, em meados dos anos 70. Eu aprendia a surfar e ele, mais velho, impunha respeito no pedaço. Não havia quiosques, a praia era vazia, mas a especulação imobiliária já abria ruas, cortava morros e planejava prédios. Eu não sabia de onde ele veio e nem para onde iria depois. Sabia apenas que ter por perto o Pedrão, o cara respeitado por todos, era garantia de que as coisas estariam em ordem.

Pedrão nasceu em 1945 no interior de São Paulo, perto de Amparo, na fazenda onde seus pais trabalhavam. Ajudava o pai na roça e a mãe na cozinha. “Até que, com 11 para 12 anos, achei que tinha que tomar outro rumo.” E lá se foi para a capital. Como faz até hoje, não olhou para trás. Jamais veria pai e mãe novamente.

Após um tempo em São Paulo, Pedrão pôs a mochila nas costas, pegou carona na geração hippie e seguiu em frente. Quando parava em algum lugar, trabalhava em boteco ou como açougueiro, padeiro ou churrasqueiro em restaurante de estrada. Em 1970, um bico para a Petrobras, de aferidor de bombas de gasolina, o levou a conhecer Ubatuba. Numa época em que o surf ainda era visto como coisa de maluco, Pedrão começou a pegar onda. Logo estaria totalmente mergulhado: além de surfista, foi juiz de campeonatos quando não havia nenhuma estrutura para a função. Os juízes, voluntários, ficavam sentados na areia, prancheta no colo, marcando as notas. Muitos dos juízes atuais dizem que aprenderam “as primeiras letras” com Pedrão. Ele começou também a laminar pranchas, deixando sua marca na então famosa fábrica Costa Norte, uma das primeiras grandes do Brasil, e em muitas outras menos conhecidas.

“Trabalhei pela primeira vez com o Pedrão em 1978, no Festival US Top de Surf em Ubatuba. A gente podia contar com ele pra tudo, que sempre foi da paz e colocava panos quentes nos conflitos”, lembra Paulo Issa, organizador dos primeiros festivais de surf de Ubatuba. “Uma vez, um pessoal pesado de Santos começou a aprontar com o carro numa avenida de Ubatuba. O Pedrão foi falar com ele e acabou levando um soco. Aí os locais entraram na história. O pau comeu e os dois santistas acabaram dormindo na delegacia”.

Armas na mesa
“O Pedrão é uma grande figura”, afirma Roberto Perdigão, diretor da ASP (“Fifa do surf”) para a América Latina e fundador da Abrasp (a “CBF do surf”). “Teve um evento em que ele era encarregado de entregar as camisetas dos competidores. Assim que terminava, ele anunciava para o Klaus Kaiser, o locutor, com seu sotaque do interior: ‘Kraus, tudo OK, bateria compreta!’. E a galera zoava ele. Até que, uma vez, ele devolveu, em português perfeito: ‘Klaus, bateria completa!’. Ficaram todos com cara de bobo, até o Pedrão completar: ‘É isso aí, bateria sem pobrema’”, conta.

Num belo dia, alguém disse que havia trabalho no Iraque e Pedrão, atraído pela aventura, de novo não olhou pra trás. Foram meses num acampamento, construindo ferrovias no país de Saddam. Calor, deserto, isolamento. O surfista hippie quase enlouqueceu e, quando o contrato expirou, saiu correndo de lá. Aí então um compadre, piloto de monomotor de passeios turísticos em Ubatuba, o convenceu a tentar a sorte no garimpo em Roraima, na fronteira com a Venezuela. E Pedrão foi. Lá trabalharia numa das atividades mais perigosas do mundo, os voos que abasteciam os garimpeiros na mata. Os aviões eram quase todos monomotores ou relíquias da Segunda Guerra e, qualquer problema, a questão era resolvida entre o piloto, a selva e Deus, sem intermediários.


Pedrão viu muita gente desaparecer em voo, inclusive o compadre que o levou para lá. “Se pipocasse alguma coisa, tinha que procurar um rio ou alagadiço pra meter a cara. Caiu na selva, um abraço”. Pedrão se especializou na recuperação de trens de pouso de aviões acidentados no mato. E daí a consertar bombas de garimpeiros, seu próximo ganha-pão, foi um pulo. O pagamento vinha em ouro, pesado na hora, com as armas sobre a mesa.

Quando Pedrão conseguiu sair de lá, veio com ele a conta do alcoolismo. Todo dia, logo cedo, eram um ou dois copos de conhaque para acordar, com outras doses ao longo do dia. A cura veio do nada, de um estalo, há alguns anos: “Não bebo mais”. E não bebeu. Mas por que Pedrão, que poderia estar julgando campeonatos de surf, laminando pranchas ou consertando trens de pouso de avião, trabalha como garçom na caótica praia Grande? Porque ainda gosta daquele canto esquerdo e, principalmente, dos donos do negócio, caiçaras que ele viu crescer, com quem surfou e que considera como sua própria família. Até porque a família mesmo de Pedrão é uma coisa mais complicada. Pais e irmãos ficaram no passado, e com os quatro filhos, cada um de uma mãe, o relacionamento é difícil.

Referência do surf em sua área, Pedrão até hoje, quando dá na telha, lamina pranchas para os amigos. Agora novamente casado, ele surfa cedinho, procura atender bem os fregueses do quiosque e segue, todos os dias, sem olhar para trás.

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