Youssef: ”Casas noturnas e pontos de encontro sumiram no mapa da especulação imobiliária”
Na década de 80, a Vila era um território livre e criativo que reunia a boemia e a vanguarda paulistanas. Pouco desse período ficou registrado. As casas noturnas e os pontos de encontro sumiram no mapa da especulação imobiliária.
Em um delicioso papo com o artista plástico e cenógrafo Zé Carratú, viajamos no tempo e aterrissamos em plena Vila Madalena do final dos anos 80, território livre e criativo, onde os alunos da ECA (Escola de Comunicação e Arte da USP) conseguiam um aluguel mais em conta e a galera de colégios que valorizavam uma educação mais libertária, como o Equipe, circulava. Naquela época, frequentar o Empanadas, na rua Wisard, era mais do que ir a um simples bar. O lugar reunia a boemia e a vanguarda cultural e estar lá era uma tentativa de se conectar com tudo de novo que acontecia.
Para os mais descolados e inseridos no bairro, era permitido atravessar a rua e entrar no ateliê do Zé, onde se reuniam os artistas do coletivo Tupinãodá, precursores e expoentes da arte urbana paulistana. Jaime Prades, Rui Amaral, além de outros que integraram a trupe, como Claudia Reis, Alberto Lima, Carlos Delfino e Ciro Cozzolin, circulavam por lá. A galera, em busca de inspiração, se deslocava em bandos para o Beco do Batman, ruela sem iluminação e de paralelepípedos, que começa na rua Harmonia, quase na esquina da rua Luis Murat. O Batman ainda estava lá e era um trabalho em estêncil pintado em uma das paredes pelo Alex Vallauri, figura proeminente na arte paulista e ídolo daquela geração.
Aterrissamos com o papo também em espaços musicais onde muita coisa importante aconteceu. As boas da época quase sempre eram os shows no Aeroanta, no largo de Pinheiros, onde despontavam bandas como Ira!, Titãs, Ultraje a rigor e Fellini. Para quem preferia uma opção mais experimental, o Lira Paulistana, na praça Benedito Calixto, era o lugar: lá se ouviam Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé e o cool jazz do Nouvelle Cousine.
Sem registro
Existiram também muitos projetos coletivos de bandas que marcaram a noite. Era muito comum embalar as noitadas com música ao vivo e repertório extenso e dançante: o Sossega Leão foi uma das mais importantes e reunia nomes como Skowa, Guga Stroeter, Hamilton Moreno, Adriano Japonês, Eduardo Cabello, além de figuras que depois se destacariam no rock nacional, como Nando Reis, Paulo Miklos e André Jung. A Orquestra Heartbreakers, que contava com Guga e reunia virtuoses como George Freire, James Muller, entre outros, marcou bastante, especialmente em suas longas e concorridas temporadas no Blen Blen, casa que se consolidaria como uma fundamental plataforma de lançamentos de toda a geração da década seguinte, os anos 90.
O que me chateia é notar que muito pouco daquele período ficou registrado. É muito raro achar imagens de tudo isso que relatei. Talvez o que reste sejam uns poucos arquivos pessoais. As casas noturnas e os pontos de encontro sumiram no mapa da especulação imobiliária e os que resistiram foram completamente desfigurados para sobreviver aos novos tempos. Até o Batman, que batizava o beco, desapareceu, junto com quase todas as obras públicas de Vallauri pela Vila.
Eu era um moleque naquele período e apenas lia os cadernos culturais dos jornais e passava perto de todos os acontecimentos para observar o movimento. Não entrei nos shows mais quentes do Aeroanta ou do Lira, nem consegui o passe mágico para estar com a turma do Zé em seu ateliê, nem para os rolês pelo Beco do Batman. Mas sempre tive a sensação de que aqueles eram momentos especiais e que marcariam a história da noite e da cidade. A mistura da arte urbana aquecida com um movimento musical e noturno denso era o retrato de uma cidade que todos queriam que se mostrasse, que figurasse no mapa e que, através de sua arte transgressora, fosse além daquele amontoado urbano, cinza e sem graça.
A Vila dos anos 80 foi uma grande inspiração para coisas que fiz mais tarde e infelizmente talvez seja um exemplo que ao longo do tempo vai se repetindo sem parar, de como a vanguarda cultural é tratada em São Paulo, uma cidade sem memória.
*ALÊ YOUSSEF, 37, é fundador e sócio do Studio SP e do Studio RJ, um dos fundadores do site Overmundo e presidente do bloco Acadêmicos do Baixo Augusta. Foi coordenador de Juventude da prefeitura de SP (2001-04). E-mail: alexandreyoussef@gmail.com/Twitter: @aleyoussef