As bactérias formam um ecossistema fundamental que se encontra na mesma situação do ambiente planetário: sob pesado ataque destrutivo e profundamente desequilibrado
POR CARLOS NADER*
Às vezes, experiências diferentes geram uma sensação igual. Em 1990, eu entrei pela primeira vez na internet. Ou a internet entrou pela primeira vez em mim. Foi assim que eu senti. Ou pressenti. Não havia web ainda. Nem foto, nem música. Só caracteres conectavam caracteres. Bons ou maus, havia apenas alguns milhares no mundo e não mais que 600 no Brasil inteiro. Mas as letrinhas vindas de algum lugar para a tela do meu XT 286 apareceram uma a uma como algo que estava sendo inscrito diretamente no DOS das minhas idéias. E aqueles poucos bits a mais me deixaram tonto. Confuso. Com o quê? Naquele momento, eu não saberia definir. A sensação veio antes da compreensão. Por que uma mensagem quase telegráfica da PUC do Chile ou uma ficha do catálogo da Biblioteca do Congresso Americano estavam dando a impressão de que a minha cadeira iria cair? Minha tontura tem hoje uma explicação óbvia. Aquelas letrinhas eram eflúvios do fluxo subterrâneo de dados que iria mudar o mundo. Difícil prever isso naquela época em que todo o tráfego internacional de dados equivalia a um terabyte, volume que hoje cabe numa caixa de fósforos. Difícil também prever que não só os poucos milhares de usuários esporádicos se transformariam em 1,5 bilhão de dependentes, mas que as próprias definições de internet e sociedade civil ou, mais que isso, de internet e homem caminhariam para uma convergência a um só tempo instigante e perigosa. Eu não previ, mas intuí. E a premonição dessa mudança vertiginosa que é a colonização do corpo humano pela tecnologia eletrônica me deixou, há 18 anos, sem chão. Tive umas poucas experiências assim na vida. Uma outra delas aconteceu no ano passado, quando eu lia sobre um assunto bem menos glamoroso. Bactérias.
Sim, bactérias. Se a simbiose com os chips eletrônicos é um processo que ainda engatinha, a interação íntima com os micróbios é uma das nossas histórias mais antigas. Temos trilhões de “germes” no corpo. Dez vezes mais que nossas próprias células. Ou seja, há mais seres estranhos a nós em nós do que células de nós em nós mesmos. E, se alguns deles são patogênicos, a grande maioria constitui uma flora fundamental para a saúde. Tão fundamental quanto um parque para uma cidade ou uma Amazônia para o mundo. Se juntássemos todos os nossos micróbios de estimação em um baldinho, eles pesariam mais que nosso cérebro. Então, se é verdade que pouquíssimas pessoas já têm um chip implantado no corpo, bactéria não falta. Não é a única diferença. A colonização do corpo pela tecnologia é um universo novo, em expansão. Já o microbioma pessoal é um ecossistema que se encontra na mesma situação do ambiente planetário. Sob pesado ataque (auto) destrutivo. E profundamente desequilibrado por ele.
YAKULT NA VEIA
Não é difícil entender as razões. A sociedade industrial ocidental tem mais horror a bactérias que a muçulmanos. O bactericídio está em toda parte. Se um agrotóxico é jogado num tomate justamente para matar microrganismos nocivos, por que ele não mataria também alguns microrganismos benignos do sistema digestivo? E o antibiótico? E o conservante? No intestino, a concentração de microrganismos é em média 50 vezes maior que em outros órgãos. Pode chegar a 100 bilhões por centímetro quadrado. São elementos fundamentais. Não só para a digestão. São essenciais para o nosso sistema imunológico, que hoje funciona histérico, radar tantã tentando discernir o joio do trigo no meio de 3 mil produtos químicos inéditos lançados todo ano, além das novas bactérias, mais resistentes, criadas pela interação desses produtos com o ambiente. Quando o sistema imunológico não consegue mais lidar com o excesso de informações, ele passa a atacar o próprio corpo. O resultado desse “fogo amigo” é o que se chama de doença auto-imune. De uma simples psoríase a um câncer, de uma enxaqueca alérgica a vários tipos de doenças mentais, a incidência de auto-imunidade é hoje epidêmica.
Quem sabe a destruição da natureza seja uma forma de autoimunidade coletiva em que a humanidade, confusa com o excesso de informação, se lança numa empreitada autodestrutiva. Não sei. O que sei é que, quando percebi que paralelo ao ataque à natureza rola um forte desmatamento da microflora pessoal, fiquei tonto. Como em 1990, minhas pernas amorais bambearam. “Amorais”, querido leitor, porque questões cruciais não podem ser tratadas com o viés binário da moral. A mesma tecnologia que confunde nosso sistema imune também o protege de doenças. Paralelas a uma compreensão geral da questão ambiental e tecnológica devem correr ações pontuais, específicas e delicadas como a construção de um jardim. Por enquanto, sugiro Yakult 40.
*Carlos Nader, 43, é um homem de mídia com uma visão microscópica da realidade. Seu e-mail é: carlos_nader@hotmail.com