Eu até posso compreender o pensamento dos individualistas e neoliberais. Daqueles que não importam com os outros. Há até uma certa coerência no discurso dessas pessoas. Acreditam que fazendo o melhor de si, estão colaborando com o desenvolvimento do mundo. Em não causando problemas, em não trazendo despesas e desperdícios, estão colaborando. Em sendo honestos, em não sendo corruptos, já fazem a parte deles. Meus parabéns aos que conseguem seguir essa linha de pensamento e consequente comportamento. Desculpem-me mas isso me parece pouco. É como fazer algum bem a familiar nosso: tem algo de obrigatoriedade nisso. E as outras pessoas? Nesse ponto é que me parecem simplistas, ingênuos ou "espertos" demais. Pensam os outros com a mesma capacidade de raciocínio, disciplina e esforço que eles. Nascemos todos iguais, todos têm os mesmos atributos, se não esforçam e não usam suas capacidades, não é culpa deles. Logo, não têm qualquer responsabilidade com os outros.
Eu seria um exemplo de suas assertivas. No meio de centenas de milhares de ex-presidiários, sou um dos poucos que conquistaram um certo respeito. Cheguei na prisão semi-analfabeto e fui o primeiro preso do Estado a ser classificado em exames vestibulares da PUC/SP. E fui o primeiro colocado. O meu maior mérito, para reafirmar a ideologia que defendem, é que foi sozinho, sem ajuda de ninguém. Na escola da prisão só havia ensino até o primeiro grau. As aulas era no período noturno, eu era considerado preso perigoso para sair da cela depois à noite. Então, fui obrigado a estudar e vencer sozinho.
Recuso-me a ser modelo de qualquer coisa. Meus pés são de barro e jamais quis aceitar tal responsabilidade. Nunca fui melhor que ninguém, na verdade fui até pior. A maioria das pessoas que estão presas não cometeram os crimes pelos quais fui responsabilizado. Ultrapassei a mais de 100 anos de condenações. Cheguei a matar na prisão, para se ter uma idéia de quanto eu era pior que os outros. A única vantagem é que apesar de meu caminho ser de pedras, eu sempre sonhei.
Nunca consegui me sentir melhor que ninguém. Quando consegui chegar ao ponto máximo que um preso podia sonhar em termos escolares, voltei meu pensamento para que outros conseguissem. A alegria com que meus companheiros receberam minha aprovação me entusiasmou deveras. Sabia que muitos deles não teriam motivações para empreender o esforço necessário. Não acreditavam neles mesmos, na justiça ou que a sociedade lhes daria uma chance real. Além do fato de eu haver demonstrado que chances se criam, precisava fazer algo a respeito.
Depois, com a eleição do Governador Franco Montoro, o Dr. José Carlos Dias assumiu a pasta da Justiça. Com ele veio a política dos Direitos Humanos e passei, mesmo preso, a ser professor. Alfabetizei trocentos companheiros de sofrimento. Todo ano havia uma fornada de presos que haviam aprendido a ler e escrever. Aqui fora, às vezes escuto alguém me chamar na rua:
_ Professor, professor...
Já sei que é ex-aluno. Fico feliz em encontrá-los pois era com amor e respeito que eu procurava ensinar. E, por conta disso, fiz grandes amizades. Poucas alegrias são tão grandes como assistir o desenvolvimento de um ser humano com as palavras. A primeira carta que eles escreviam para a família era uma glória. Não só para eles, mas principalmente para mim.
Como os outros poderiam desenvolver o mesmo esforço que empreendi, se nem sabia ler ou escrever? E mesmo aqueles que sabiam, como iriam acreditar que a justiça e a sociedade iria agir com eles do mesmo jeito que agiu comigo? Sabíamos que éramos odiados pela população, pelos guardas de presídio e pela polícia. Isso ficava absolutamente claro quando eles invadiam a prisão com suas armas e cacetetes. Éramos mantidos acuados, ameaçados e só sobreviviam os mais habilidosos. Não haveria perdão para nós. Estou há mais de 10 anos aqui fora, vivendo do que escrevo e falo e até hoje o preconceito me cerceia. Muitos não me dão chance sequer de me aproximar e mostrar meu trabalho. Não admitem que cresci, aprendi, que sou um cidadão honesto, participativo e atuante.
Embora o raciocínio daqueles que defendem o pós modernismo possa ter alguma consistência, existem os menos favorecidos pela inteligência, os mais simples e os mais humildes. Também são humanos aqueles que não têm forças para arremeterem-se contra as muralhas de preconceitos impostos. Aqueles que nasceram pobres, cercados de misérias, crime e fome. Os enjeitados, os doentes, os viciados, aqueles com problemas psicológicos e físicos. Aquelas crianças que dormem nas calçadas e vivem do lixo produzido pelos mais aquinhoados pela sorte. E estes são sim da inteira responsabilidade daqueles mais capazes, que lutam, ralam e se esforçam. Somos todos brasileiros e vivemos em uma sociedade que se afirma cristã, logo somos todos irmãos.
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Luiz Mendes
17/11/2014.