Quem é esse ser humano?

Trip / HIV

por Luiz Alberto Mendes

HUMANOS

 

 

            A dor é brutal. Cada qual a sente à sua maneira. Não pode ser transferida e não há palavras que expressem sofrimento.

            Estar preso é doloroso. Experiência inenarrável porque impossível de ser dimensionada. Às vezes me parece que liberdade é valor somente avaliado pôr quem a perde. O presidiário sofre. E não pouco, como levianamente se diz.

            Mas se estar preso é dolorido, imagine estar preso e doente. Pior ainda: estar preso, doente e com AIDS. Pois é, e são muitos. Milhares de seres humanos em tais condições. Esse é o caso do Santista e do Rafael.

            Fui procurar Rafael no hospital da prisão. Sempre foi pessoa envolvida em confrontos. Nem sempre concordei com seus extremismos. Mas respeitei. Principalmente pôr sabê-lo portador do vírus HIV e ainda trabalhar como enfermeiro de companheiros em piores condições que ele.

            Precisava de remédios para um amigo adoecido. Pedi para que o chamassem: Rafael estava muito ocupado. Atendia a um doente. Eu não poderia perder a viagem. Andar na prisão era complicado. Pedi autorização para procurá-lo.

            Autorizado, sai caçando-o nas celas do hospital. Vi companheiros sofrendo males diversos. Era desolador. Encontrei-o na cela do Santista. Eu o conhecera. Era muito forte, atleta da Seleção de futebol da Casa. Desses meninões criados na areia da praia santista jogando bola dia e noite.

            Vê-lo ali derramado na cama, somente em pele e ossos, assustou-me. O homem às vezes me parece um instante em vão. Vive imerso em esperanças, para tombar ali, varado de dores. Em mim, a consciência era de estar vivendo pesadelo inteiramente real.

            Rafael estava com o copo do liquidificador nas mãos. Dentro, um líquido espesso, mamão. Enchia um copo de plástico, quando o cumprimentei. Recebi meio sorriso, em resposta. Parecia estranho, absolutamente preocupado com o que fazia. Um rádio tocava música do Pink Floid falando de professores e um muro.

            Falei do amigo adoecido. Rafael me escutava, aparentemente desatento. Passou manteiga em um pão, de olho tenso no Santista. Este não aparentava estar vivo ainda. O enfermeiro improvisado fez curtas perguntas sobre o estado do amigo pelo qual o procurara.

            Levantou-se ajeitou travesseiros às costas do amigo prostrado ali e lhe ofereceu o copo de vitamina e o pão amanteigado. Olhos assustados negavam. Pareciam afirmar que não conseguiria engolir aquilo. Mesmo assim, com dificuldade imensa, levou o pão à boca e mordeu, ingerindo gole de suco de frutas. Quando o pedaço de pão e o suco desceram através daquela garganta fina como papel, suspiramos aliviados. Quase batemos palmas. Rafael relaxou e deu a atenção que eu necessitava.

            Não queria que eu me impressionasse. Havia outros em piores condições. Nisso a mão do Santista tremeu. O copo já ia lhe escapando. Mais rápido que o vento, o amigo enfermeiro apanhou o copo na descendente. Com enorme paciência tornou a explicar. Era preciso beber e comer. Era sua vida que ele estava tomando. Colocou o copo na boca do rapaz e desceu mais um gole. Quando tentava empurrar mais uma golada, Santista recusou-se. Não queria beber e nem comer mais nada.

            Num estalar de dedos, Rafael se transformou. Levou o copo à boca do paciente e forçou. O ar se recarregou de tensão. O doente, sem forças, tentando afastar o copo da boca cerrando os dentes O enfermeiro subiu na cama e colocou o companheiro adoecido entre os joelhos. Com uma mão, abriu-lhe a boca e com a outra, despejava mais líquido guela adentro do paciente. Uma espuma colorida surgiu no canto de seus lábios. O amigo vociferou:

            -Vamos, porra! Engole logo isso ai, seu filho da puta! Não tá vendo que vai morrer se não se alimentar? Vai morrer feito covarde, se entregar sem luta? Vamos, seu animal, reage, caralho!

            Mesclando palavras duras com outras de estímulo, em pouco tempo, virou o copo todo. O dono daquela vida desistia. O amigo o acordava do torpor da morte que estava mergulhando. Retornou à possibilidade de sobrevida.

            Que tipo de ser humano era Rafael, questionava-me. Não tinha religião e era semianalfabeto. Fora bandido na rua, matara mais que a peste. Fazia aquilo porque? Pôr amizade, solidariedade, ou porque defendia sua vida na vida do outro? O saber, a ciência, o conhecimento, não penetrava em tão extremada circunstância. Tudo ali é coração.

             Sai do hospital com o medicamento que fora buscar, mas compungido. Provavelmente não veria mais aquela gente. Tudo me parecia confuso, tropeçava em minhas incertezas. Havia esperança, mas também muita dor, sofrimento. Os mais rudes e brutais, de repente, transformam-se em os mais humanos. O que pensar? Quem era o ser real?

            Blindados, vivemos a administrar a vida qual fora um negócio. Estranhos e iguais, cegos a fluir para a escuridão. Mas, como diria o poeta, ninguém é uma ilha e toda certeza é que não há certeza alguma.

                                           **

Luiz Mendes

02\0l\2000    

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