Como a relação entre Haiti e República Dominicana faz a roda da grana girar no Caribe
Enquanto Caetano Veloso e Gilberto Gil cantavam “o Haiti não é aqui” em 1993, no país do refrão – a primeira nação negra das Américas –, o jovem Juan Bosquet provava o tempero de um prato da culinária típica creole e inaugurava seu restaurante na cidade de Mirebalais, a 60 km da capital Porto Príncipe. Por lá, ganhava dinheiro suficiente para viver com tranquilidade e algum conforto e pensava em se casar. Era um ano de transição. O país havia passado mais de duas décadas sob o domínio do ditador François “Papa Doc” Duvalier e seu filho Jean-Claude Duvalier, o “Baby Doc”. A expectativa de vida na região despencara para 51 anos. Além disso, o presidente eleito, Jean-Bertrand Aristide, que parecia ser a esperança de democracia na região, acabava de ser deposto por um golpe militar. “A sensação era que o caos nunca iria terminar. Era um golpe depois do outro. Vivíamos com medo, mas era preciso lutar . Suportei até 2001. Nesse ano, por causa de conflitos políticos, destruíram meu restaurante. Me vi um chefe de família sem a possibilidade de garantir segurança, educação e comida aos meus filhos. Foi então que resolvi deixar o país”, lembra Juan em um inglês com sotaque francês carregado.
Ao mesmo tempo, ali ao lado, o país encravado na outra metade da Ilha Hispaniola deixou para trás seus conflitos políticos. A República Dominicana cresceu e tornou-se um dos destinos turísticos mais visitados do paradisíaco Caribe, graças a atrações como Punta Cana, polo que reúne dezenas de hotéis de alto luxo. Investiu em extensas plantações de cana-de-açúcar e no tabaco, que produz o charuto Colorado Robusto, da Casa Magna, escolhido como o melhor do mundo pela revista americana Cigar Aficionado. Com a disparidade entre os vizinhos, veio a dependência. Em busca de comida, paz e trabalho, cerca de 800 mil imigrantes haitianos, segundo cifras não-oficiais (de um total de 8,5 milhões de habitantes na República Dominicana e 8,3 milhões no Haiti) atravessaram a fronteira. A maioria entrou no país ilegalmente e vive em condições precárias. Longe da família, dos amigos e em uma terra na qual nem a língua é a mesma (os dominicanos falam espanhol e os haitianos, francês e creole), sonham em voltar para casa.
Juan fez questão de fazer tudo dentro da lei. Em seis meses, estava com o visto de residência na República Dominicana. Na época, o trâmite custou US$ 40. “Pode parecer pouco, mas, para um país que tem 80% de sua população abaixo da linha de pobreza, era um bom dinheiro”, diz. Juan arrumou emprego como recepcionista de um hotel e mandou buscar mulher e dois filhos em sua cidade natal alguns meses depois. Hoje vive no bairro de Beròn, que concentra trabalhadores haitianos e dominicanos em condições modestas, porém habitáveis, a 15 min de Punta Cana. E não desistiu da luta. “A grande maioria de meus conterrâneos vive escondida em lugarejos chamados bateys, próximos de resorts em construção ou no meio de canaviais. E é para eles que dedico meu tempo livre, quando falo diretamente aos haitianos que estão aqui no meu programa de rádio evangélico. Eles precisam de suporte espiritual e de ajuda humanitária”, diz Juan.
Nas entranhas de um batey
Para quem mora no Brasil, a descrição de um batey não é muito diferente da de uma favela. Barracos improvisados, falta de saneamento básico, pobreza. Mas não foi só isso que encontrei. Na beira das estradas ou em meio a canaviais que não acabam nunca, dezenas de pessoas vivem nas piores condições que se possa imaginar. Não há música, não existe um boteco, as cores são poucas. Lembra um acampamento de guerra. O clima é tenso, a maioria não quer mostrar o rosto ou falar com quem é de fora da comunidade. Abandonam família e amigos, com quem ficam sem falar por meses, às vezes anos. Vivem sob a pressão do medo de serem descobertos. Há poucas mulheres e crianças e o chão é de terra batida. Os facões da lida na cana estão por toda parte, assim como os cortes acidentais nos braços, costas e dedos.
Um dos moradores concorda em me receber na sua casa quando digo que sou brasileira. “Brasil com Dios. Brasil, Haiti amigos”, arranha em espanhol, agradecendo o trabalho do exército brasileiro em seu país. No interior do barraco não há cama. Apenas um pedaço de lona sobre o qual ele dorme com mais três amigos. Não há armários ou banheiro. Os poucos pertences pessoais ficam pendurados nas paredes. Do lado de fora, uma frágil estrutura de madeira sustenta um toldo sobre um fogão improvisado. Uma sorridente senhora, que cruzou a fronteira para viver com o filho, mostra o jantar na panela de barro. Mandioca. E só. Pergunto quanto ganha um cortador de cana. Um deles faz o sinal universal de pouco. Insisto e ele revela um valor que equivale a menos de R$ 120 por mês – para viver ali e mandar o que sobrar para o Haiti.
Dependência mútua
Pontualmente às cinco da tarde, pedreiros, eletricistas, pintores e outros trabalhadores aglomeram-se em pontos nas estradas, à espera do transporte fornecido pelas empresas responsáveis por negociar seus subempregos. Algo que lembra o caminhão pau de arara no Brasil. Consigo bater um papo com Emilton Ceneus, eletricista de 26 anos. “Existe preconceito aqui. Os haitianos aqui são como os ‘chicanos’ nos EUA. Tenho permissão para trabalhar, por isso consigo voltar a cada quatro meses para ver minha família e tiro cerca de US$ 750 mensais. Muitos de nós tivemos boa educação e trabalhávamos em cargos muito superiores aos que temos desse lado da ilha”, diz. Um outro trabalhador, que prefere não revelar o nome porque está ilegal, vai além. “Às vezes a polícia aparece aqui no ponto às seis da manhã e leva todo mundo preso. Os ilegais apanham ou são devolvidos ao Haiti, onde não existe perspectiva.”
Apesar das duras da polícia, os dominicanos com quem conversei admitem que as autoridades fazem vistas grossas para a entrada dos haitianos. O gerente de um empreendimento de luxo confessa que, na verdade, a República Dominicana depende desses trabalhadores. “Os haitianos são 90%. Os dominicanos preferem trabalhar em serviços ou comércio. No fundo sabemos que sem eles nosso negócio daria menos lucro”, revela. O próprio ministro do Turismo dominicano – atividade que movimenta
US$ 4,2 bilhões por ano –, Francisco Javier García, diz com todas as letras: “Somos a salvação dos haitianos. E também precisamos deles. Por isso não há programas especiais contra a entrada em nosso território”. Adalberto Rosa, presidente da associação nacional de charutos, um negócio de US$ 400 milhões por ano, conta que 80% dos trabalhadores nas plantações de tabaco vêm do Haiti. “Reconheço que muitos deles são ilegais. Não são trabalhadores muito habilidosos e alguns nunca haviam visto uma folha de tabaco. Mas são espertos e aprendem rápido. Não podemos ignorar o que acontece com eles. Ou trabalhamos em equipe ou afundamos”, conclui, enquanto queima um charuto de US$ 50. O Haiti não é aqui. O Haiti está em toda parte.