Por que não viver não viver esse mundo?

Nos anos 70, eles largaram tudo para viver de música. 30 anos depois, os Novos Baianos retornam ao local onde tudo aconteceu

"VENDO – DIRETO C/ PROPRIETÁRIO”, avisa a placa fixada no portão da propriedade número 20.160 da estrada dos Bandeirantes, no afastado bairro de Vargem Pequena, zona oeste do Rio de Janeiro. A chácara atrás da placa não chega a ser luxuosa, mas é ampla, com piscina, quadra de esportes e dependências confortáveis. Lembra muito pouco o Cantinho do Vovô, nome pelo qual era conhecido o mítico sítio onde os Novos Baianos viveram em comunidade, e onde foi escrito um dos capítulos mais extraordinários da história da música popular brasileira.

A Trip propôs uma visita de reencontro do grupo, extinto em 1979, ao ex-Cantinho do Vovô, quase 40 anos após a chegada da trupe hippie ao então rústico e precário local. Há muito se sabe que o espírito comunitário se perdeu com a poeira da estrada de terra que levava ao sítio, e as manobras acidentadas para concretizar o encontro comprovam isso.

A ideia teve adesão imediata de três quartos dos Novos Baianos originais. Toparam o desafio Paulinho Boca de Cantor e Baby do Brasil (ex-Baby Consuelo), que estavam em São Paulo, e Luiz Galvão, que partiu de Salvador para passar em Vargem Pequena a sexta-feira 13 de agosto de 2010.

Moraes Moreira e Pepeu Gomes não quiseram participar do encontro com os outros integrantes

Moraes Moreira, o quarto integrante do grupo formado na Bahia em 1969, participou dos NB até 1974 e costuma ser o mais arisco aos reencontros. Ele concordou em visitar o sítio, mas se fosse separado dos demais. Propôs-se uma segunda turma, que incluiria dois integrantes d’A Cor do Som, subconjunto instrumental incorporado aos Novos Baianos a partir de 1972. Moraes se reuniria com os irmãos Jorginho e Pepeu Gomes na segunda-feira 16. Mas Pepeu se recusou a participar, Moraes desistiu, alegando compromissos profissionais de última hora, e o segundo encontro foi cancelado. D’A Cor do Som original, restavam Dadi Carvalho, que topou participar da reunião da primeira turma, e Baixinho, que já morreu.

SAMBA, ROCK E FUTEBOL

“No exterior, os caras são inimigos, mas trabalham. Os Rolling Stones não podem se olhar na cara, mas estão juntos até hoje, ganhando dinheiro. Aqui, qualquer besteirinha atrapalha”, queixa-se Galvão, 72 anos, o mais velho dos Novos Baianos, na van abarrotada que leva ao túnel do tempo os músicos, seus agregados (Baby traz o filho Krishna Baby e namorada, além de uma equipe de filmagem que prepara um documentário sobre ela), a reportagem e a produção da Trip.

A “besteirinha” mais recente aconteceu durante reencontro no Carnaval baiano de 2010, marcado por desavenças que acabaram por afastar Pepeu dos ex-companheiros. “A única coisa que Pepeu não quer mais na vida é se reunir com eles. O último reencontro não foi nada satisfatório para ele”, disse Simone Sobrinho, sua empresária e esposa, ao recusar o convite. “Isso aconteceu também com a Yoko Ono, com a mulher do Paul McCartney, não é?”, reage Baby, mãe de seis filhos com Pepeu – inclusive duas meninas (Sarah Sheeva, ex-Riroca, e Zabelê) nascidas nos tempos de samba, rock e futebol em Vargem Pequena.

Quem deu o nome de Maria à filha de Paulinho foi João Gilberto, quando ela já tinha dois anos

Além de Baby, Moraes e Paulinho também tiveram ali no sítio dois filhos cada um – o hoje músico Davi Moraes era um deles. Os dois levaram para a vida comunitária suas esposas à época, ambas chamadas Marília (“Marilona e Marilinha”, lembra Galvão). “Tem muitas mulheres envolvidas e nenhum marido. Posso fazer Novos Baianos sempre, quantas vezes eu quiser, sem chatear ninguém”, provoca Baby.

Os nomes das crianças são um indicativo do mundo à margem em que viviam os Novos Baianos naqueles anos de revolução hippie e ditadura militar. Quem deu o nome de Maria à filha mais velha de Paulinho foi o amigo e inspirador musical João Gilberto (baiano de Juazeiro, conterrâneo de Galvão), quando ela já tinha 2 anos. Até então, só possuía um apelido – o pai era Paulinho Boca, “la Bouche”, e a filha ficou conhecida como Buchinha, só.

DEBAIXO DA PONTE

“Eu queria ser terrorista, comunista, e com 20 e poucos anos fiquei anarquista. Quando fumei maconha, derrubei o terrorismo pelo anarquismo”, evoca Galvão, sob os protestos de Baby, 58 anos, que hoje é evangélica e não gosta de falar sobre drogas.

O espírito livre valia para as circunstâncias boas e para as más. Com uma passagem oferecida por uma amiga, a niteroiense Baby foi parar em Salvador em 1969, no dia em que completava 17 anos. Diz que foi direto ao teatro Castro Alves para assistir ao show Barra 69, que marcava a despedida de Caetano Veloso e Gilberto Gil, rumo ao exílio. Pepeu era um dos músicos da banda. “Fomos para a casa de Caetano e Gil, achei Pepeu muito lindo e tasquei-lhe um beijo na boca. Por causa dele conheci Moraes, Galvão e Paulinho.”

Pepeu foi tocar na banda de Gal Costa, Baby se perdeu dos outros. E foi “morar” embaixo da ponte de Piatã. “Estava fugida de casa. Fiquei uns dois meses ali, quando não dava pra dormir na ponte eu dormia no coreto da praça ou nas pedras do farol da Barra. Consegui levar Pepeu para debaixo da ponte comigo, imagina o que a mãe dele achou disso.”

Dali, Baby foi a São Paulo, onde se juntou a uma turma de jovens hippies das redondezas da rodoviária central. Na cidade seria gravado o primeiro (e lisérgico) LP dos Novos Baianos, É Ferro na Boneca, de 1970. Mas o Rio viraria o ninho da trupe até então nômade.

DÊ UM ROLÊ

Ali, o primeiro local de moradia comunitária foi o célebre apartamento em Botafogo onde os NB recebiam João Gilberto, no início da fase de criação do histórico segundo álbum, Acabou chorare (1972), e de sambas eletrificados como “Preta Pretinha”, “O Mistério do planeta”, “Tinindo trincando”, “A menina dança e Besta é tu”. “Baby e Pepeu moravam pendurados na varanda”, ri Galvão.

O apartamento foi alugado por Paulinho, que nascera em Santa Inês (BA), numa família de classe média alta, se formara engenheiro-agrônomo e agora abdicava de tudo para aderir ao ideário hippie. “A família não se responsabilizou mais pela minha escolha. Disseram: ‘Se você quer, tudo bem, mas não vamos dar força’”, lembra Paulinho. “Era esta a nossa filosofia dos Novos Baianos: nós não queremos ter nada.”

A fase pré-sítio foi de chapação e andanças pelas ruas do Rio. “Vamos falar em fumo agora, porque quando Baby chegar não pode mais”, brinca Paulinho, hoje com 64 anos, enquanto a van espera numa rua movimentada do Jardim Botânico, por mais de duas horas, a chegada da cantora. “Tinha sempre polícia na saída do túnel, quando arrumava um baseado a gente tinha que ir rápido, ficava dando rolê de carro em volta da lagoa. A letra de ‘Dê um Rolê’ é por isso”, conta, referindo-se à canção que só lançaram em compacto e ficaria famosa na versão de Gal Costa, em 1971.

Paulinho explica o porquê da mudança para o sítio para lá de Jacarepaguá: “Acabamos saindo do centro porque estávamos manjados, dando pinta. Todo mundo estava cabeludo, nego dando recado. Era melhor arranjar um lugar tranquilo, natural, que tivesse mato”.

CARAMBOLA, BABY

A van chega ao sítio, e todos percebem de imediato a descaracterização quase completa do cenário. Baby e Leila Carvalho, esposa de Dadi desde os anos 70, põem-se a procurar pés de jenipapo e carambola e a árvore em que Caetano Veloso gostava de subir. A certa altura Baby trepa numa árvore e aparece segurando uma fruta colhida do pé. “Será que esta carambola é real?”, pergunta-se.

Galvão se dirige aos fundos do terreno, onde ficavam casinhas de madeira construídas para ele e para o casal Baby-Pepeu morarem. Recorda que na sua, no canto esquerdo, ficava guardado o dinheiro administrado coletivamente.

O diretor do documentário sobre Baby, Rafael Saar, traz num notebook um filme sobre os NB rodado ali mesmo, em 1973, por Pedro Moraes (filho de Vinicius), e até hoje inédito. Nas imagens em preto e branco, veem-se mato, montanhas e jovens muito magros e cabeludos reunidos em rodas de samba no terreiro de chão batido.

Baby despista quando Paulinho lembra, às gargalhadas, o dia em que ela deu maconha a Wanderléa

SUJO E PIOLHENTO

Galvão reconhece a parede feita de esteiras de seu puxadinho e exclama: “Era atrás delas que eu guardava o dinheiro. E as pontas de baseado”. “Para, fica quieto”, ordena Baby, que também despista quando Paulinho tenta lembrar, às gargalhadas, o dia em que ela deu maconha a Wanderléa, a Ternurinha da Jovem Guarda. “Vai começar a baixaria. Pó pará. Foi maravilhoso, mas eu não aceito.” Na tela do computador, Baby se vê muito jovem, deitada, admirando com ternura a recém-nascida Riroca, e suspira: “Tenho que mostrar isso pra minha filha, pra ela me amar mais...”.

Segundo a lembrança de todos, ninguém tinha conta bancária. “De repente apareceu Petúnia, uma empresária que falou que íamos estourar, ganhar muito dinheiro, comprar três carros de uma vez. Chegou com um Dodge Dart no sítio, tivemos que fazer um sorteio para ver em nome de quem o carro ia ficar. E o sorteado se deu mal, porque teve que pagar as prestações”, ri Paulinho. “Podíamos ter comprado o sítio, mas ninguém nem pensou nisso”, avalia Galvão.

Paulinho rememora a rotina no Cantinho do Vovô. “Depois do café da manhã, Galvão ia compor, Moraes ficava tocando. A gente se exercitava muito, ia pra praia de bicicleta. Quando o sol estava acabando, começava o baba”, diz, chamando pelo codinome baiano as peladas de futebol, em terreno próximo ao sítio (aquele que ornamenta a linda capa do terceiro LP, Novos Baianos F.C., de 1973). Dadi mostra onde ficava a mesa de madeira que aparece na capa de Acabou Chorare e que foi, segundo ele, construída por Pepeu.

Apontam os lugares do terreno onde ficavam o velho galinheiro desativado e o chuveiro coletivo. “Paulo Salomão, o técnico de som, morava lá. Transformou o galinheiro em estúdio, colocou amplificadores, caixas de som nos galhos das árvores”, diz Paulinho. “Depois do jogo, rolava um imenso banho coletivo. Não era todo mundo nu, libidinagem. Era sexo, drogas e rock’n’roll, mas tudo em casa”, gargalha. “Diziam que a gente era sujo, piolhento, mas todo mundo tomava banho todo dia, ficava cheirosinho. Fazíamos uma refeição por dia, ‘almojanta’, e íamos tocar. Era quando se criava mais.”

Emocionada por voltar ao lugar que conheceu aos 15 anos, Leila conta lances por uma ótica menos romântica. “A gente passava muita fome no sítio, eles não estavam nem aí. Lembro de andar quilômetros para ir matar a fome com um milho verde”, diverte-se. Lembra, também, do dia em que uma equipe estrangeira chegou para filmar o grupo e encontrou todas as mulheres de toucas, com as cabeças cheias de inseticida – os piolhos haviam infestado a comunidade.

O carioca Dadi lembra que eram raras as saídas do sítio: “Apesar do sucesso das músicas no rádio, não rolavam muitos shows, então a grana era meio curta. E no sítio tinha muita gente morando – amigos, pessoas que apareciam e acabavam ficando, muitas bocas para alimentar e pouca grana. Isso não era um problema, porque a gente se divertia demais, vivia filosoficamente. Descobrir uma nova forma de vida era o foco”. Baby se manifesta, com bossa carioca malandra: “Dadi está casado até hoje com Leila. Não sabia jogar futebol, mas é o único que teve o suingue de segurar a mulher, moçada”.

O emblema Novos Baianos F.C. não era à toa. A parte masculina do grupo formou mesmo um time de futebol, que chegou a jogar com equipes profissionais do Flamengo e do Botafogo. Apareciam para as peladas jogadores como Zico, Roberto Dinamite, Jairzinho, Alfredinho. “A gente fazia uma feijoada, uma peixada, eles iam e jogavam com a gente”, afirma Galvão.

Aos 58 anos, Dadi diz que até hoje não se modificou quanto ao espírito “all you need is love” dos NB: “Hoje tenho muitas responsabilidades que não tinha, contas pra pagar, filhos. Todo o dinheiro era dividido por todos que moravam lá, e acho que por isso tenho até hoje dificuldades em relacionar dinheiro com música. Mas tenho conseguido viver dela, estou aprendendo aos poucos”.

NOVOS BAIANOS SOCIAL CLUB

A comunidade hippie abandonou o sítio em 1977, mas não deixou de existir. Mudou-se para São Paulo e ainda viveu no mesmo esquema num casarão no Pacaembu. Moraes comprou, reformou e morou durante anos no terreno de Vargem Pequena.

Com a possível exceção de Moraes, os NB não se encaixaram no perfil de transformar seus nomes em grifes ou empresas de MPB, como tantos de seus contemporâneos. Paulinho trabalha em projetos de resgate de nossa história musical e acaba de lançar o DVD Paulinho Boca de Cantor canta Novos Baianos. No Nordeste, divide-se entre fazer shows com músicas de Carnaval em fevereiro e de forró no meio do ano. Na Bahia, Galvão escreve o roteiro de um filme de ficção inspirado nos velhos Novos Baianos. “Meu pai foi vereador em Juazeiro, nunca ganhou o dinheiro que eu ganhei, mas viveu melhor do que eu, porque na época dele não havia o consumismo de hoje”, reflete.

Baby atualmente é “popstora”, como ela denomina. Embora reprima “os meninos” quando falam de maconha, ela não se recusa a tratar do assunto, e explica: “Não gosto muito de brincadeira com droga, porque essas coisas são extremamente perigosas. Sem nenhuma caretice, mas pra não parecer que a gente está valorizando”. Apesar de garantir que a maconha era seu Deus nos anos 70, Galvão parece concordar com a amiga: “A gente sofria e não sabia que sofria. Quando vê um filho seu com maconha, você fica triste”. Afirma, com orgulho, que não fuma há 17 anos.

Uníssonos, os “Baianos Reunidos” lamentam a dificuldade em juntar todos aqueles que pareciam inseparáveis décadas atrás. “Se vierem me chamar com 80 anos, eu não venho, hein?”, graceja Paulinho. “Se for Buena Vista Social Club, vão ter que pagar um caminhão de dinheiro, senão não venho”, completa. “Eu venho!”, sorri Baby.

A van entra num condomínio de Jacarepaguá para deixar Paulinho na casa de sua filha Maria. “BUCHINHA!!!”, grita Baby, até que aparece no portão o rosto de uma mulher com as mesmas feições da menina sem nome certo que dançava no filme de 1973. E sim, Baby, a carambola era real.

Agradecimentos Rafael Saar, diretor de Apopcalipse segundo Baby, e Vitale Administradora de Bens, administrador Antonio, tel.: (21) 3866 4541 / 7880 9972 ID: 12*53848

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