Brasileiros veteranos de outras pororocas encaram o Rio Qiantang, na China
Sérgio Laus interrompe pela metade uma das histórias que conta sobre sua última surf trip. Fica alguns segundos em silêncio, como alguém que acaba de se dar conta de algo, e dispara: “Cara, imagina se os chineses tomam gosto pelo surf?”. Antes da resposta, ele emenda: “Não teria mais espaço no mar, seria o maior crowd do mundo!”, diverte-se. O surfista havia voltado há poucas semanas do país mais populoso do mundo. Em sua viagem, porém, não precisou se preocupar em dividir ondas com muitas outras pessoas. É que Serginho, como é conhecido, esteve na China para surfar a pororoca do rio Qiantang. E pouca gente se arrisca a encarar aquela que foi considerada pelo Guinness Book a mais potente onda de rio do mundo, com o recorde de 9 m de altura e 40 km/h de velocidade. Menos gente ainda tenta convencer o rígido governo chinês a liberar uma session de surf no meio de Hangzhou, uma cidade de quase 9 milhões de pessoas.
Veterano das pororocas amazônicas, Serginho convenceu – mas sem escapar de um intenso controle. “Ao mesmo tempo em que existe aquela magia de procurar a onda perfeita num lugar exótico, tem uma série de regras impostas por pessoas acostumadas a uma ditadura. Lá tudo tem lei, até nosso surf tinha que ser dentro das leis.” Isso significa que eles tinham espaço específico para surfar, horários rigidamente estipulados, seguranças fiscalizando cada movimento e autoridades revisando fotos e vídeos ao fim do dia. Não exatamente a liberdade que se espera de uma surf trip. Mas só ter a autorização para estar ali já era uma grande vitória.
As negociações de Serginho com o governo chinês começaram meia década antes de ele descer pela primeira vez uma onda no rio Qiantang. “Depois de cinco anos batalhando recebi um comunicado dizendo que eles estavam dispostos a negociar minha ida para lá, mas eu teria que pagar US$ 100 mil.” A proposta foi recusada pelo surfista. Com insistência, o número de zeros foi diminuindo até que o chefe de esportes aquáticos local aceitou que o preço fosse de um único e solitário zero. Serginho não desembolsaria nada, só teria que receber a autoridade chinesa no Brasil para mostrar seu trabalho feito em pororocas por aqui. O trato foi feito – e em 2008 saiu a primeira excursão para a onda chinesa. De lá pra cá foram três idas, mas nunca com tamanho envolvimento de público e mídia como nessa última vez.
Quase um Tietê
“Estimaram em 500 mil as pessoas aglomeradas nas margens.” Quem solta o número é Chloé Calmon, longboarder carioca de 17 anos que também deslizou no rio chinês – aliás, foi a mulher mais jovem a fazer isso. “Foi diferente. Eram milhares de arranha-céus e de pessoas na beira do rio”, diz. De fato a experiência de pegar onda no meio de uma megalópole com milhares observando foge de qualquer estereótipo do surf. “Só não digo que é como surfar no Tietê, em São Paulo, porque o rio é mais largo e não tão poluído”, compara Serginho. “Mas é surfar cruzando uma megacidade, passando por baixo de pontes cheias de caminhões e carros, trilhos de trem, escutando buzinas num trânsito parado e caótico... E quando você sai da água ali estão milhares de pessoas te olhando, ocupando as margens. É um negócio absurdo. O único contato com a natureza era com a água, o resto é concret jungle.”
E é justamente por ser uma selva de pedra que a onda ganha ainda mais força. “A margem do rio é toda concretada. Nos outros rios de pororoca a margem é natural, de lama, e isso absorve um pouco da potência. No concreto não, a força da onda fica canalizada, não dissipa.” Nessa bomba de energia concentrada, Serginho ficou quase 15 min seguidos deslizando, acompanhado pelo big rider Everaldo “Pato” Teixeira. Bastante tempo se comparado ao surf no mar, mas pouco considerando o que ele pretende fazer em breve. A ideia de Laus é reconquistar o recorde de distância e tempo surfando uma pororoca. Atualmente o feito é de um inglês que percorreu 15 km sem cair da prancha. E Serginho quer bater esse número voltando mais uma vez à onda chinesa.
As idas frequentes à pororoca do país asiático fazem com que Serginho tenha cada vez menos empecilhos diante do governo chinês – e, assim, possa voltar outras vezes sem tanta burocracia. Mais do que isso, a cada onda dropada na China ele consegue, lentamente, instalar uma cultura quase inexistente por lá: a do surf. Serginho, Chloé e Pato deixaram de presente suas pranchas em território asiático. Querem que o povo de lá tome gosto pela sensação de descer uma onda tendo só uma prancha aos pés – e pela sensação de liberdade que vem acompanhada. “Seria bom para um lugar de regras tão rígidas”, aposta Serginho. Se isso acontecesse, ele nem se preocuparia com a possibilidade de um futuro supercrowd ou da invasão de chineses nas ondas do mundo.