Em artigo exclusivo, Carlos Nader defende que o poder do mito ainda manda
Membro do conselho editorial e ex-colunista da Trip, o documentarista Carlos Nader está mergulhado há décadas no caldo de cultura que forma o Brasil. Em um artigo exclusivo para esta edição, ele passeia pelo avesso do pensamento convencional e defende que o poder do mito ainda manda – e hoje pode se manifestar em Neymar, Obama, Osama, Mídia Ninja, Mumuzinho ou na bunda da blogueira fitness com seus milhões de seguidores
Onde está o poder? Começo dando essa entortada leve na pergunta lançada pela Trip porque acredito que a questão seja mesmo espacial. Onde? Como qualquer mudança de estrutura acontecendo nesta virada ainda incompleta do milênio, a redistribuição do poder também se deve principalmente à criação de uma dimensão espacial nova, o espaço-tempo gerado pelo que hoje chamamos de internet.
Não é que eu acredite naqueles slogans aguados da linha “a revolução está na ponta dos seus dedos”. Não. A revolução é bem mais embaixo. No chão, literalmente. O que rola na face da Terra nesses últimos anos é uma sumida de chão progressiva, veloz, uma desterritorialização vertiginosa que começou bem antes da internet, com o telégrafo, que se expandiu com a telefonia internacional, que se prolongou com a mídia de massas e que vai se completar com a colonização do corpo humano pela tecnologia da informação.
A fusão da biologia com a tecnologia vai reconfigurar de vez a nossa noção de espaço e de tempo. Esse reset da percepção humana está sendo prenunciado por gadgets de realidade aumentada como o Google Glass. E, mesmo sem eles, o cidadão eletrônico médio já sabe que o tempo passa bem mais rápido simplesmente quando a gente está imerso no oceano on-line. Sabe também que um deslocamento internacional é uma viagem infinitamente menor depois do advento do Skype. É só o começo.
No futuro, a tela será mental. Toda tecnologia material tende a se entranhar, a desaparecer da vista. O computador evoluirá para um órgão biotecnológico de comunicação e processamento? O Google se transformará numa parte do cérebro? O YouTube será um dos nossos telessentidos? O e-mail será eletrotelepático? Provavelmente. A capacidade de computação e fabulação comum sem precedentes proporcionada pela tecnologia restituirá à virtualidade o status que ela tem mesmo que ter. Virtual será o que há de mais real.
Meu delírio profético tem raízes bem pedestres. Entrei na internet em 1989. Menos de mil pessoas estavam on-line em todo o Brasil. Quando vi pela primeira vez que as informações vindas em tempo real da Biblioteca do Congresso Americano se transformavam em letrinhas de fósforo verde na tela do meu PC/AT, o chão tremeu. Não é uma metáfora. Foi uma sensação física real, como se tivesse rolado um espasmo sísmico bem embaixo da minha cadeira, como se meu corpo sacudido por alguma força misteriosa tivesse intuído, antes da minha consciência, que o mundo nunca mais seria o mesmo. Foi uma das sensações mais poderosas que já experimentei.
Então, passados 25 anos, minha resposta para a pergunta inicial é óbvia. O poder está hoje na rede de comunicações que muda o mundo. Mas a questão que se coloca imediatamente a seguir é bem mais complexa. Como é que esse poder se manifesta?
Para começar a responder, neguinho tem que se livrar daqueles memes bobos que sugerem que você pode ficar poderoso na hora que quiser. Num universo que se desterritorializa, taí um tipo de ideia sem pé nem cabeça. E que se desmancha no ar.
Na internet, nem tudo acontece na velocidade da luz. O mundo está se transformando? Muito. E a natureza humana, aquela que rege as relações de poder? Nem tanto.
Nessa esfera, as coisas se movem mais lentamente. No entanto, há um inegável movimento de acomodação das placas tectônicas que compõem as estruturas mais profundas do poder. E “acomodação” aqui é uma palavra ao mesmo tempo justa e enganosa. Estamos falando daquilo que dá origem a terremotos. Acomodações incômodas. O que é essencialmente humano não se transforma, se é que se transforma, sem atrito. Não há mudança de poder sem solavanco. Essa é uma das cláusulas pétreas do manual das relações humanas. O poder não muda de mãos como uma rosa. Quem tem poder ralou. Quem quiser poder vai continuar tendo que ralar.
Quem, então, tem poder hoje? Começa a responder alguém que nem está mais aqui, o escritor Philip K. Dick: “Vivemos numa sociedade em que realidades espúrias são fabricadas pela mídia, pelos governos, corporações, grupos religiosos e políticos. Então, eu pergunto: o que é real? Somos bombardeados incessantemente por pseudorrealidades fabricadas por gente que usa mecanismos eletrônicos muito sofisticados. Não desconfio dos motivos deles. Desconfio do poder deles. É um poder impressionante: o de criar universos, universos da mente. Sei disso porque faço a mesma coisa”.
PK Dick, o maluco mais visionário da contracultura americana, publicou essa reflexão bem antes da web. Tem poder quem consegue criar uma narrativa. E por narrativa entenda-se não só uma estória convincente, bem empacotada, mas sobretudo aquilo que a antecede: uma visão de mundo poderosa, sedutora, que catalise corações e mentes. É assim. De Marina Silva a Valesca Popozuda. De Marcelo Tas a Guilherme Boulos. De Fernando Henrique a Lula. De Osama a Obama. A narrativa virtual é inclusive mais poderosa que a força bruta. Caso contrário, os militares ainda estariam no topo do Planalto e os palestinos já estariam sob a areia do deserto. No princípio, é sempre o verbo.
Sempre. De Abraão a Capilé, líderes lidam com o poder do mito. A narrativa é condição sine qua non para a ascensão profética. Seremeos sempre o povo do livro, da crença na estória. Como diz o filósofo Paulinho Gogó, de A praça é nossa, “quem não tem dinheiro conta estória”. Tanto quanto a própria fome de poder, a fome de estória é linha mestra no código que programa o sistema operacional do ser humano. A gente já nasce clamando por narrativas que venham dar algum sentido ao caos da existência ou que pelo menos o amenize, pela via do prazer. Quanto vale o show? Vale tudo.
Acontece que um fast-food engordurado de informações está suprindo essas necessidades fisiológicas. A gente conhece em tempo real aquilo que realmente interessa ao botocudo da aldeia global. Num grande portal como o UOL, por exemplo, a lista das cinco “notícias” mais lidas neste exato instante em que escrevo começa por “Quem são as loiras que estão com Neymar” e termina com “Hilda Furacão vive sozinha em asilo pobre na Argentina”. Importa pouco o aumento da inflação ou a invasão de Gaza. Importa muito a estória, mesmo que aos fiapos. Ou farrapos.
Nesse contexto, talvez o que realmente esteja mudando em relação às diferentes formas de poder seja a própria relação de forças entre elas, entre o soft power e o hard power, entre o sopro criativo e a força destrutiva. É bem alvissareira a notícia de que o poder esteja sendo exercido hoje muito mais por encantadores do que por brucutus. Só que aqui também é preciso cuidado para não cair no conto de uma realidade espúria. Está mudando tanto assim? A resposta ao “quem tem poder?” lançado pela Trip na enquete da página 65 foi inequívoca: “Os mesmos de sempre, ainda”.
O ambiente tecnológico que colocou no topo do mundo uma proposta de poder até então nova como aquela encarnada por Barack Obama é o mesmo que deu à NSA os meios de exercer numa escala sem precedentes uma das formas de poder mais antigas e nojentas, a espionagem. O contexto hipermidiatizado que criou uma figura sofisticada como Bruno Torturra, ex-diretor de redação da Trip e inventor do Mídia Ninja e do coletivo Fluxo, é o mesmo contexto inflacionado que dá Ibope a gritalhões como Jair Bolsonaro, ex-coronel e deputado.
Lembro inclusive que na mesma época em que o Mídia Ninja estava em seu auge, durante as manifestações de junho de 2013, um amigo de infância me mandou o link do Instagram de uma jovem que não tinha realizado absolutamente nada que a destacasse do resto da humanidade. Nada, a não ser a própria bunda, rotunda, conquistada graças a uma intensa rotina de malhação e divulgada ao mundo através de fotos diárias. O Twitter do Mídia Ninja tinha e tem 30 mil seguidores. O Instagram da bunda, 4 milhões.
O mundo eletrônico parece estar sendo no mínimo tão generoso com aqueles que adaptam velhas narrativas quanto com aqueles que criam novas. Não é fácil ver uma tendência clara de mudança. Quem não está confuso, está mal informado. Ainda assim, nem tudo está vencido pelo cansaço que a overdose de bits tem gerado. O fato é que há vários narradores verdadeiramente novos, vitais, vitalizantes, inclusive em meios tradicionais.
A narrativa virtual é mais poderosa que a força bruta. Caso contrário, os militares ainda estariam no topo do planalto e os palestinos já estariam sob a areia do deserto
Eu citaria por exemplo todas aquelas figuras luminosamente escuras, como Mumuzinho, que mistura virtuose musical e palhaçada todo domingo no palco do Esquenta!, de Regina Casé e Hermano Vianna, para dar um sinal claro de que, pela primeira vez na história, as cores da nossa TV em cores podem refletir mais honestamente as cores do nosso país ainda mais em cores. Mencionaria também alguns criadores como Gregório Duvivier e Antonio Prata, que usam antenas privilegiadas para resgatar as raízes poéticas e recolocá-las na equação do humor.
Não cabe todo mundo aqui. Felizmente. São muitos e bons. E não só artistas. Há seis anos, o Trip Transformadores se dedica a reunir uma penca frutífera de ativistas de todas as espécies. Dê um Google. Tem de tudo. Ciclista distribuindo bolsa universitária, executivo do mercado financeiro ensinando computação para criança, porteiro criando um universo fashion sofisticado, skatista fazendo inclusão social, designer fabricando brinquedo pedagógico, administrador de empresas plantando árvore e cartunista homem virando mulher. O alcance prático de cada visão, cada sonho, cada intervenção ainda é limitado. Já a narrativa inspiradora que eles produzem, voa.
Difícil definir o que esses transformadores têm em comum, mas duas qualidades ululam. Primeiro, a afirmação incondicional da liberdade do indivíduo na sua relação com o Estado, a igreja, o partido ou a empresa, ou qualquer outra dessas estruturas mais arcaicas que paradoxalmente também podem ter suas características mais opressivas potencializadas pela própria tecnologia. Segundo, a realização de uma mistura sem medo nem culpa de atividades economico-sociais até aqui apartadas, exatamente como fazem o Mumuzinho ou o Duvivier em seus palcos.
Essa forma mestiça de transformar tem outra característica muito brasileira. Ela não se dá pela via batida da confrontação ideológica, que a história já cansou de mostrar fadada à derrota ou à criação de uma estrutura ainda mais opressiva que aquela que foi vencida. Os novos transformadores são insiders. Eles conduzem a mudança dentro do sistema, num processo internalizado, entranhado, uterino, paulatino e criativo, como uma gestação. E a vida que eles geram transborda de um poder digno do nome.