por J.R.Duran
Trip #218

Duran: ”desastres são atribuídos à chuva como se este fosse o único país onde chove”

No Brasil, os desastres são atribuídos à chuva, como se este fosse o único país onde o fenômeno acontecesse. Mas aqui ela pega os responsáveis pelos serviços públicos com as calças da improvisação na mão

“Acabou a água, acabou tudo”, diz na televisão o homem magro, sergipano, com a pele enrugada e o chapéu de palha velho castigados pelo sol, camisa furada aberta no peito, o gado emagrecido pela seca em segundo plano da câmera. Enquanto vejo a cena no noticiário, lá fora, a chuva torrencial desaba sobre a cidade de São Paulo.

Não consigo assistir por inteiro à reportagem. Além do barulho da chuva de primavera, meus ouvidos – treinados e escarmentados – percebem outro som. É o de um transformador da Eletropaulo no fim da rua de minha casa, que, pendurado em um poste como um bicho-preguiça ameaçador, produz um zumbido digno de Guerra dos mundos ou Distrito 9. Mas não é nenhuma nave alienígena atirando suas descargas sobre nós, terráqueos. O barulho é provocado por uma sobrecarga de eletricidade que normalmente termina com uma explosão. Sei que, antes disso, a voltagem alterada provocará uma oscilação de energia que vai fazer os eletrodomésticos mais fracos irem para o espaço. Dois computadores e uma televisão já foram parar nessa Via Láctea provocada pela incompetência alheia.

Essa é uma das razões porque a cada vez que vejo o céu nublado no horizonte – ao contrário do fazendeiro da televisão, paradoxo meteorológico –, tremo. Por algum motivo, aqui no Brasil, todos os desastres são atribuídos aos efeitos da chuva. Como se este fosse o único país do mundo onde esse fenômeno atmosférico acontecesse. Os efeitos são, sempre, devastadores. Ao mínimo excesso pluviométrico, os trens param de funcionar, uma estação de metrô afunda (essa não foi a causa, mas foi uma das razões apontadas como justificativas plausíveis na época), aeroportos fecham – e, quando não o fazem, aviões saem da pista –, árvores caem, bairros ficam sem energia elétrica, semáforos passam a piscar as três cores ao mesmo tempo, estradas ficam alagadas, pontes são levadas pela correnteza, morros deslizam sobre casas, o congestionamento de carros nas cidades piora como nunca e telhados desabam.

Promessas furadas

A chuva é um acontecimento natural mais antigo do que andar a pé. Surpreende que ela sempre pegue os responsáveis pelos serviços públicos – isso quer dizer os serviços básicos – com as calças da improvisação na mão. A cada desastre não faltam as promessas de que, num futuro não muito distante, tudo vai ser consertado. Mas é um futuro que na próxima emergência fica evidente ser impossível de alcançar. Um futuro que aparece como visto através de um binóculo ao contrário.

Em um momento em que se descobre que alguns apagões elétricos foram causados pela falta de para-raios em certas linhas, só tenho uma coisa a dizer: o que me deixa inseguro é a incompetência dos outros. Incompetência que, inevitavelmente, se transforma em prejuízo para terceiros.

E, só para lembrar, eu e você – não eles, os outros – somos parte dos terceiros.

*J. R. Duran, 59, é fotógrafo e escritor www.twitter.com/jotaerreduran

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