Pizza de sushi com quibe

Caramuru: ”No ano 457 da deglutição do bispo Sardinha, celebram-se os 25 da Trip”

Hoje, no ano 457 da deglutição do bispo Sardinha, celebram-se os 25 da Trip, a mais antropofágica das revistas brasileiras

No ano 374 da deglutição do bispo Sardinha (ou, no calendário comum, em 1928), o poeta Oswald de Andrade publicou o Manifesto antropófago. Mais do que um projeto estético, havia ali uma concepção do Brasil ou do que o Brasil deveria vir a ser. Um país que misturasse o antigo e o novo; o português, o índio, o francês, o americano, o africano, o japonês, digerindo tudo e criando alguma coisa nova, original e, sempre, bem-humorada. Pois nem o bispo escapou do bom humor de Oswald: o pobre infeliz – viajando de volta para Portugal em 1556 depois de ter sido o primeiro bispo do Brasil, tendo naufragado no São Francisco – escapou de se afogar, mas, ao chegar à praia, foi capturado e logo depois devorado por índios caetés. Esse evento viria a marcar o “ano zero” do calendário antropofágico...

O texto do Manifesto, um poema em prosa de matriz surrealista, é delicioso, belo e irreverente. Se você não leu ainda, leia. O Manifesto começa assim: “Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi or not tupi that is the question”. E tem passagens como esta: “Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o jabuti. Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais. Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política, que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário”. E esta: “Somos concretistas. As ideias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimanos as ideias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas”.

O Manifesto mudou o Brasil, embora nem todo mundo tenha entendido o que aquilo queria dizer. Por exemplo, alguns anos depois, Plínio Salgado, um dissidente do movimento (que o ferino Oswald chamava de “o Hitler de Camanducaia”), estaria tentando fundir fascismo, cristianismo e “tupiniquinismo”, numa salada política que chegou a colocar milhares de pessoas marchando nas ruas, mas que acabou não dando em nada. É inegável que nenhum manifesto estético deixou tantas marcas, em nós brasileiros, como aquele. Mais do que dizer que a tropicália, o Zé Celso, os irmãos Campos, o Caetano, o Gil e muitos et ceteras são herdeiros daquele projeto, a verdade é que o melhor da cultura brasileira, e o que mais a diferencia de outras, no mundo, está ligada a essa matriz antropofágica. O Brasil é o único país do mundo onde Iemanjá e Nossa Senhora Aparecida dançam reggae, abençoam e comem juntas pizza de sushi com quibe.

Amadurecer sem envelhecer

Mas o Manifesto antropófago pode também ser lido como uma celebração, uma celebração que, fazendo graça com a tragédia de um bispo que celebrava missas e que terminou seus dias sendo devorado numa celebração caeté, defendia um jeito peculiar, bem-humorado e brasileiro de lidar com o mundo. E tudo isso foi para dizer que, hoje, no ano 457 da deglutição do bispo Sardinha, celebram-se os 25 da Trip, a mais antropofágica das revistas brasileiras, na qual assunto sério é tratado com bom humor e bom humor é tratado com seriedade. A Trip de hoje não é, felizmente, a mesma de um quarto de século atrás. O tempo passa, as coisas mudam e quem não se fossiliza se transforma. Mas, também felizmente, aquilo que é essencial, que está no DNA, permanece. Esta é a coluna de número 60 que escrevo para esta revista. Escrevê-las, apesar do trabalho que dá, e que não é pouco, está entre as atividades mais gostosas que faço. E, na celebração pelos 25 anos da Trip, além de dar os parabéns, eu espero continuar tentando aprender com ela como é que se faz para amadurecer sem envelhecer.

*André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

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