Piada de português

Caramuru: ”Estamos construindo sociedades mais justas, porém mal-humoradas”

Estamos construindo sociedades mais justas, porém mal-humoradas. Até piadas de português são perseguidas, com emissoras de TV vetando-as nos programas de humor. Não vou estranhar quando o Ibama proibir fazer graça com papagaio

Eu sou fruto do mau humor. Ou, melhor dizendo, de uma reação a ele. Porque (encurtando bastante a história) uma das coisas que fizeram meu avô pegar a família e se mandar de Genebra, na Suíça, e acabar no Brasil, foi o fato de ele não suportar o tédio calvinista, conservador, sem graça e cinzento da cidade em que nasceu. Logo depois, meu pai (que quando chegou aqui tinha 18 anos) conheceu minha mãe e... aqui estou eu. Não sei se tem a ver com os motivos de meu avô, mas quem me conhece poderá confirmar que eu sou um bem-humorado por natureza, sempre pronto a rir e fazer piada sobre qualquer situação. O problema é que o mundo está ficando um lugar perigoso para pessoas como eu.

É verdade que, em boa parte dos casos, a alegria de uns tem sido a desgraça de outros. E quando os “outros” tiveram os meios para isso, eles nunca hesitaram em se vingar da risada de “uns”. Nos últimos tempos, os meios de defesa passaram das eventuais porretadas dos ultrajados às muito mais eficientes leis e patrulhas ideológicas, que punem implacavelmente toda manifestação considerada ofensiva (incluindo as piadas que exploram traços físicos, de saúde, questões étnico-raciais, religiosas ou de orientação sexual).

Bem-vindos, senhores, ao império do politicamente correto. É um mundo ruim? Não dá para dizer isso. Afinal de contas, passaram a ser assegurados os direitos de pessoas que antes não tinham como se defender e restringiu-se o poder de humilhar com palavras e gestos. Não há como não condenar o riso arrogante dos que estão por cima e se sentem donos da verdade. Mas, na outra ponta, ao limitarmos aquilo de que se pode achar de graça, estamos de fato restringindo a liberdade de expressão. Pois ou eu bem posso dizer o que me der na telha, ou não. Sim, nosso mundo pode até estar ficando melhor, mas ele também está ficando, sem sombra de dúvida, mais besta: nem clássicos infantis, como os livros de Monteiro “Reinações de Narizinho” Lobato (racista!) e do alemão Otfried “A Bruxinha Sabida” Preussler (outro racista!), ou velhas cantigas de roda, como “Atirei o pau no gato” (que supostamente incentivaria os maus-tratos aos animais), têm escapado ilesos do recente patrulhamento ideológico.

Saco de risadas

Estamos, neste começo de século 21, construindo sociedades gradativamente mais justas, mas mais mal-humoradas. Até mesmo as velhas piadas de português têm sido perseguidas, inclusive com emissoras de televisão vetando-as em seus programas humorísticos, e não vou estranhar o dia em que o Ibama proibir as piadas de papagaio. Como me disse minha filha Naná, estudante de direito, o problema maior não é a liberdade de reclamar de algo que se considerou ofensivo; a coisa complica é quando o politicamente correto vira lei e passa a comprometer a liberdade de expressão. Se esse ímpeto coercitivo não for refreado, ele poderá impedir, no limite, que qualquer cartum seja desenhado, que qualquer livro seja escrito, qualquer filme seja filmado (Tarantino chegou a ser acusado de racismo porque a palavra nigger era falada em Django Livre!). O politicamente correto, à solta e legalizado, acabará por impedir, no fim das contas, o riso.

Qual a fronteira ideal entre preservar o direito à livre expressão e o direito (de uma única pessoa ou de grupos étnicos, religiosos etc.) de não se sentir moralmente agredido? Confesso que não sei. Mas fico pensando que é possível que, do jeito que as coisas estão indo, um produto indispensável para ter em casa, no futuro, será o velho saco de risadas... Para que, quando o mundo todo estiver parecido com a opressiva Genebra na qual meu avô não conseguia respirar, qualquer pessoa possa saber como era o som daquelas coisas já há muito tempo extintas da face da Terra, o riso e a gargalhada.

*André Caramuru Aubert, 50, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

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