por Millos Kaiser
Trip #207

Herson Capri enfrentou um adversário muito mais difícil do que os galãs: o câncer pulmonar

Conhecido como o homem mau de inúmeras novelas, Herson Capri enfrentou na vida real um adversário muito mais difícil de superar do que os galãs globais: o câncer no pulmão. E, dessa vez, ele venceu. Protagonista de uma famosa propaganda de cigarro nos anos 70, hoje o ator afirma: “Transformar o cigarro em questão de liberdade individual é uma excrescência”

No apartamento de Herson Capri há apenas um cinzeiro. Ele é de argila, tem uma casa e um sol pintados e só está lá, em sua mesa de centro, pois foi feito pelas mãozinhas de Luiza, sua filha caçula, em uma aula de artes. Desde 1993, esse tipo de objeto não tem muito uso para o ator global. Foi naquele ano que ele finalmente tornou-se um ex-fumante convicto, depois de quase três décadas em que chegou a consumir três maços por dia. Para Capri, hoje com 60 anos, cigarro nem se for de mentira. Se algum papel envolve fumar em cena, por exemplo, ele não topa. E não quis nem ver o cigarro eletrônico que Trip levou para a sessão de fotos debaixo d’água.

Tamanha ojeriza não é para menos. Quando já estava havia seis anos livre da nicotina, seu corpo resolveu cobrar a conta de toda a fumaça que engoliu por tanto tempo. Realizando exames pré-operatórios para uma lipoaspiração que faria para encarnar Jesus na peça Paixão de Cristo, Capri descobriu um tumor no pulmão, a meio centímetro da pleura. Era câncer. O ator deu sorte: segundo o Departamento de Medicina da Unifesp, em quase metade dos casos a sobrevida após cinco anos do diagnóstico fica entre 10 e 15%.

“Com cigarro ficava tudo opaco. Sem ele você mais que vê, você admira”

Com fôlego novo, o Herson Capri nadador, campeão paranaense, voltou à raia. E, vira e mexe, viaja para praticar mergulho na companhia de Suzana, sua esposa, e dos quatro filhos. Um programa de férias inimaginável para o Cortez de Insensato coração, vilão da penúltima novela da Rede Globo que arrebatou o Brasil. Tanto que emendou um papel no outro: atualmente, ele é Alberto, protagonista de Aquele beijo. E ainda está em cartaz com a peça Conversando com mamãe. No meio disso tudo, arranjou tempo para bater um papo com Trip e cair de roupa e tudo na piscina do prédio onde mora, na zona sul do Rio de Janeiro. A meninada ficou em volta, sem entender nada. “Eles estão fazendo uma matéria sobre homens de fôlego”, explicou o pai da Luiza.Quando ainda exibia Freire ao final do nome artístico, lá pelos idos dos anos 70, Capri estrelou a campanha do cigarro Continental. No filme ele é um jovem que regressa da metrópole para sua cidade natal, em um emocionante reencontro com a família e os amigos. O ator aparece fumando no trem, no táxi e à mesa de café da manhã, onde oferece um cigarro para o pai. Completando o clima, a trilha é “O portão”, de Roberto Carlos (aquela do “Eu voltei/ Agora pra ficar”). O garoto-propaganda de marca de cigarro que teve câncer de pulmão... seria irônico se não fosse recorrente, vide dois cowboys da Marlboro e um dos Winston Man, todos vítimas da mesma doença do brasileiro.

Quando você começou a fumar?
Com 11 anos. Com 12, 13, parei. [Luiza, ao lado, arregala os olhos: “Aos 11, pai?”.]

Mas você já sabia tragar com essa idade?
Na rua aprende-se de tudo. Cresci em Ponta Grossa (PR), onde tinha uma turma de amigos fantástica, jogava futebol, fazia fogueira, assava pinhão, batata-doce quase toda noite. E ali, claro, rolou cigarro. Mas meu pai descobriu, me botou de castigo. Ele fumou uma época, assim como minha mãe, mas tinha todo um discurso contra.

Você gostou na hora?
Não. O que me atraía era o ato de fumar. A fumaça é uma coisa esquisita, não é legal. Mas o gesto era transgressor, significava não ser normal, ser mais velho, imitar os galãs de cinema.

Mas você disse que parou aos 12...
É, quando meu pai descobriu. E aí veio a natação, que me afastou do cigarro. Mas quando entrei no teatro desandei de vez. Embalei mesmo com 15 anos, mas parei várias vezes na vida. Cheguei a ficar dois anos sem, mas voltei. É um vício, né? Você tem o prazer da garganta, que é interessante. Tem o gestual, a fuga. Quando você está estudando, trabalhando, é um ponto de apoio, uma âncora.

O que fazia você tentar parar?
Fumar não é inteligente, assim como todos os vícios ligados a alguma droga. Você prejudica sua saúde, sua vida social. Produz menos, se concentra menos, enxerga menos, cheira menos, sente menos. Tudo menos. É sem sentido. É realmente feito para o lucro de uma indústria, disso não há dúvida. Na verdade, como tudo no sistema em que vivemos. O cigarro é um exemplo máximo disso, porque passa por cima da saúde em função do lucro. A bebida é outro exemplo. Deveria haver um sistema ético que determine o que pode ser fabricado ou não.

Você se considera uma vítima da propaganda?
Não era apenas uma propaganda, era toda uma cultura. Os intelectuais fumavam, os artistas fumavam, as pessoas populares fumavam. E você se sentia segregado se não fizesse igual.

Quando jovem, você foi campeão de natação do Paraná. Mesmo nadando, você fumava?
Fumava antes das provas porque ficava nervoso! Depois fui campeão justamente quando parei por um período. Óbvio! O cigarro intoxica. Você fica sem vontade, tudo fica mais arrastado. O que foi mais forte para mim quando eu parei foi a clareza do olhar. Eu conseguia enxergar o céu azul bonito. Com cigarro ficava tudo opaco. Sem ele você mais que vê, você admira.

Você fez o comercial do cigarro Continental, hoje antológico. Como surgiu o convite?
Me viram numa peça, em duas propagandas e me chamaram. Quando li o roteiro fiquei encantado, porque era um filme completo, com início, meio e fim. E eu nunca tinha feito um filme! Achei que era minha chance. Eu fumava, não tinha nenhuma preocupação em fazer propaganda de cigarro, em ser politicamente correto.

E alguém tinha essa preocupação na época?
Ninguém. Pelo contrário, me paravam na rua para elogiar, de tão bonita que ela era. Você pode utilizar a arte para qualquer coisa. E nós artistas botamos o nosso trabalho à mercê de quem paga.

Já passou pela sua cabeça que você talvez tenha influenciado pessoas a começar a fumar?
Tenho certeza de que sim.

Isso incomoda você?
Não, sou tão vítima quanto algoz.

Mas você se arrepende de ter feito?
Não posso me arrepender. Sei que fiz um trabalho que mandava as pessoas fumarem, e isso não é legal. Mas naqueles tempos se eu falasse isso para alguém iam achar que eu era maluco. Não tinha sentido eu recusar.

Como você largou o cigarro?
Foi uma linha de chegada de todas as minhas outras tentativas anteriores. É muito perigoso falar “um dia eu paro”. Tem que parar logo. Parei em 1993, decidido de que fosse para sempre.

Você foi ao médico, tomou remédios?
Nada. Só força de vontade. Voltei a nadar, competi de novo na categoria master, ganhei medalha de segundo lugar.

Mesmo assim, seis anos depois apareceu o câncer.
Apareceu exatamente no ano em que parei, mas só fui descobrir depois. Talvez por intuição. Acredito mais em intuição do que em premonição ou destino.

Como você descobriu a doença?
Fui fazer uma lipoaspiração para interpretar Jesus na Paixão de Cristo e nos exames pré-operatórios descobriram. Nem era vaidade, não. Era para fazer o papel. Cristo só comia mel e nozes, era magérrimo. Sou italiano, tenho essa picanha lateral no abdome [risos], a ossada larga.

Como foi esse dia?
Foi a Suzana que pegou a chapa. Cheguei em casa e ela estava chorando. Ela é médica, viu na hora o que era. Perguntei o que estava acontecendo e ela: “Nada, nada”. Até que arranquei o envelope da mão dela.

Você entendeu logo do que se tratava?
Só podia ser câncer. Tava feio pra caramba. O médico falou: “É uma bomba-relógio, está muito perto do coração e do pulmão”. Passei raspando.

Como você encarou o tratamento?
Com uma praticidade quase desagradável.

Não tinha medo de morrer?
Não, porque eu tinha certeza de que ia morrer! Passei tudo para o nome da Suzana, que na época era só o carro e a conta do banco.

Mas o médico falava que você ia morrer?
Não. Dizia que a chance era de 50% nos primeiros dois anos após a cirurgia e que depois ia diminuindo. Mas eu só soube disso quando as chances eram quase zero. A Suzana escondeu de mim.

E você interpretou Jesus mesmo assim.
Sim, o médico liberou. Disse que dependia de mim. Então claro que eu fiz.

Você nota uma mudança de comportamento na classe artística em relação ao cigarro?
Tenho certeza de que se fuma menos atualmente, em todas as classes. É complicado fumar hoje em dia. Tenho um cunhado que vem aqui em casa, pega o elevador e vai até a rua fumar. Eu digo brincando: “Prefiro sua fumaça a sua ausência”. O cara se sente culpado, mesmo que não queira.

O que você acha das restrições ao fumo?
Acho correto. Assim como você não pode roubar, matar, você também não pode prejudicar os outros com a sua fumaça.

Mas você acha que faltam outras iniciativas?
O cigarro deveria ser mais caro, por exemplo? Não sei. Acho que a queda da indústria tabagista vai ser natural.

o cigarro deveria ser proibido?
Não. A sociedade cria mecanismos de autoproteção. E eu acredito na liberdade de escolha, desde que se saibam as consequências.

Você fez parte do quadro no Fantástico do Drauzio Varella sobre cigarro e agora está dando uma entrevista sobre o mesmo tema. Você quer ser um herói contra o fumo?
Não. Só estou dando esta entrevista porque vocês pediram [risos]. Mas, falando sério agora, acho que posso colaborar expondo minha experiência. Só não vou pegar uma bandeira, porque respeito muito a liberdade individual. Detesto ex-fumante chato. Se perguntarem o que acho, eu respondo, mas só isso. A única questão que eu defenderia é a da prevenção, de fazer checkup. Não temos no Brasil o costume de pedir exames antes de os sintomas aparecerem. Mas a possibilidade de cura é sempre muito maior se pegarmos o câncer começando. Eu, por exemplo, não tinha sintoma nenhum.

Hoje a indústria tabagista defende-se batendo na tecla da liberdade individual. O que você acha disso
Uma excrescência. Se o produto dela mata pessoas, deve haver um contrapoder, que é exatamente o que está acontecendo.

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