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PAZ NA GUERRA, PONTOS NO IBOPE

Nosso colunista ecoa a polêmica que se seguiu à sua crítica ao SBT

Por Redação

em 21 de setembro de 2005

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Há duas colunas, no calor das vitórias ibópicas conseguidas pela primeira Casa dos Artistas, fiz um ataque bastante aberto à cartilha televisiva do Silvio Santos. Eu defendia a idéia óbvia de que na Rede Globo o investimento em qualidade criativa é um esforço minoritário, mas sustentado, e no SBT ele é uma virtual inexistência. Houve uma reação enfurecida de parte dos leitores. Fui muito criticado e, em dezenas de vezes, xingado mesmo. Fiquei assustado. Não pelas ofensas cheias de grossura e vazias de imaginação. O que me deixou pasmo em relação a boa parte dos leitores/telespectadores que vêem no SS um justiceiro ‘anti-redeglobalizante’ foi a vontade maniqueísta de vingança contra o grande satã global. Havia nos e-mails o desejo infantil de gozar com o baú alheio, o apelo autodestrutivo pela lei do ‘quanto pior melhor’, a reivindicação do direito de ser maltratado pelos meios de comunicação. Não precisa ser nenhum MacLuhan para decifrar a ideologia de comunicação que norteou toda a carreira de Silvio Santos, desde seus míticos tempos de camelô. Ela se resume a um verbo. Vender. O SBT, sua criatura, é fiel ao mandamento único. Tudo o que aparece na tela da emissora está à venda. Não é só a Tele-Sena ou o caldo anunciado no ritmo da dança da galinha azul. Num Domingo Legal ou Casa dos Artistas, é a inti-midade. Num Povo na TV ou Ratinho, é a dignidade. Num Show do Milhão, é o conhecimento ou sobretudo a falta de conhecimento. Num Topa Tudo Por Dinheiro, como o nome indica, é qualquer coisa.Com o perdão do trocadilho barato, é claro que eu sei que nem o Silvio é santo, nem a Globo é santa. Ninguém é santo no reino do UHF. Mas olhando numa perspectiva histórica, não há outra figura televisiva que represente tão bem o comercialismo de palco. Silvio, que, é bom não esquecer, nasceu de uma costela da Globo, é o padroeiro nacional da idéia de uma TV como vitrine de gente. A doutrina que ele semeia tem encontrado um terreno cada vez mais fértil. Todas as outras emissoras abertas, em maior ou menor grau, vêm rezando a mesma cartilha. Tem muito apresentador, filhote de Silvio, que poderia estar dentro de uma loja, trabalhando como vendedor. Dava inclusive para continuar usando a mesma roupa, fazendo os mesmos gestos, repetindo os mesmos discursos. Nada contra a atividade digna do vendedor, inclusive nos meios eletrônicos. O problema é só a caretice estética e a onipresença que reduz a TV a um imenso Shop Tour. Com a diferença de que o Shop Tour é claro em relação ao que está vendendo.Casa dos vendedoresO que vende a TV? É triste observar a ofensiva arrasadora do interesse econômico sobre manifestações culturais espontâneas de que a TV poderia ser um reflexo mais fiel. Não estou aqui defendendo nenhum puritanismo. O comércio é uma função vital da humanidade. Só não acho que deva ser a única. O fundamentalismo comercial das emissoras abertas é a alegoria de um exagero que se instaura em todos os espaços. Como disse o arquiteto Rem Koolhaas recentemente: ‘Há uma explosão do ato de consumo e a cidade, que era o local público por excelência, tornou-se o local do comércio’. Se é assim com os átomos das ruas, por que não seria com os bits da mídia, que inclusive é a maior aceleradora desse processo? ‘Sem-querer-querendo’, como diz o Chaves, os programas fomentam o culto a uma idéia intangível de sucesso material, da felicidade que aparece encarnada num corpo siliconado pisando num tênis de marca que acelera um carro importado na direção de um restaurante de luxo. Nada contra as delícias materiais de consumo e poder. O chato é essa ideologia eletrônica que as transforma na finalidade única da vida. O chato é o vazio existencial que ela gera, sobretudo quando semeada num terreno fertilizado pela injustiça social, turbinando uma escalada insuportável de ansiedade e violência. Ou não?Muitos leitores enviaram e-mails que corriam na base do ‘a vida é assim mesmo, não adianta ficar pensando tanto, o que manda é o interesse vil, o dinheiro’. Etecetera e tal. É o mesmo raciocínio dos programadores que baixam o nível para seguir a receita do baú e que esquecem que um Auto da Compadecida dá mais resultado, inclusive comercial, do que tudo o que o SS tenha inventado ou copiado. É estranho que não percebam ou não queiram perceber que a própria Casa dos Artistas (CDA) lança o SBT num novo patamar de audiência não só pelo seu lado futriqueiro, mas porque, além de ser muito bem realizada, traz uma narrativa inovadora para muitas questões populares. É uma Ilha de Caras sadomasô e metalingüística que aborda um dos temas centrais da era midiática, a veneração da celebridade e do espetáculo, além de encenar em horário nobre, com inegável realismo, várias questões sociais fundamentais como raça ou cigarro, luta de classes ou sexo.DeuS SSNão que eu ache que tenha baixado um filósofo francês no corpo do Silvio Santos. O ‘toque de mestre’ que muitos viram na troca dos anônimos do Big Brother original pelas celebridades da CDA é o mesmo ‘toque de mestre’ do Athayde Patreze quando escala a Vera Loyola para o seu programa. SS não é o presidente da TV Cultura mas do SBT, canal do Pablo. Mas até o Silvio, que vem fazendo o papel de Deus nos domingos da CDA, está escrevendo certo por li-nhas tortas. Nem por isso é preciso acreditar no mito ingê-nuo de que ele vai purgar o mundo de todo o mal que o demônio global lançou pela TV, a janela do inferno. O fundamental nessa discussão é não se deixar abater pelo fogo cruzado maniqueísta dos que travam uma batalha tão de vigésima, sejam leitores ou emissoras. A expansão belicosa do interesse econômico vem sempre acompanhada de um cinismo grosseiro que quer relativizar ou ridicularizar toda reflexão contrária. E a gente está entrando numa época em que a reflexão pacifista tem que ser exercida radicalmente. Em relação a todas as guerras, inclusive a da audiência.

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