Seis bambas da música brasileira se encontram para uma jam session que virou disco a partir de um único ponto em comum: o nome Maurício
Um dia, o produtor Maurício Tagliari, dono do estúdio e da gravadora YB, sonhou que estava em uma big band de jazz elétrico, emendando grooves e riffs criados aleatoriamente ao lado de velhos comparsas com quem nunca havia tocado. No decorrer do sonho, um estalo: todos os outros músicos tinham o seu prenome. E foi assim, num plano abstrato, que surgiu uma das ideias musicais mais inusitadas de 2018: a Universal Maurício Orchestra, uma bandaça composta apenas por pessoas chamadas Maurício e que lança seu primeiro disco homônimo — Trip mostra em primeira mão a faixa "Mesa pra 5".
Além de Tagliari na guitarra, os outros Maurícios que completam a formação são o baterista Takara (conhecido por seu projeto solo M. Takara e seu trabalho com o grupo Hurtmold), o baixista e tecladista Fleury (que toca guitarra e teclados no Bixiga 70, além de acompanhar Gal Costa e Anelis Assumpção), o percussionista Badê (um dos fundadores do Mestre Ambrósio), o tecladista Bussab (do grupo Bojo e à frente da distribuidora digital Tratore) e o saxofonista e vocalista Pereira (ex-Mulheres Negras e de respeitável carreira solo).
Depois do sonho, Tagliari enviou um email para todos os envolvidos, seduzido pelo que previu. “Já sonhei com músicas, mas com um projeto desses foi a primeira vez. O sonho era muito real. Tanto que tive o impulso de escrever contando para os outros Maurícios", conta o guitarrista e produtor. "Não foi cheio de significados, nenhum prato cheio para Freud e Jung, acho. Acho que foi só um toque do inconsciente.” A vantagem de ser um sonho, explica, é que nada foi levado muito à sério e todo mundo embarcou na brincadeira. "Mas sabemos que sonhos são poderosos."
"Primeiro, os instrumentos foram distribuídos exatamente como estavam no sonho, mas o legal é que a gente pode trocá-los. Teve um momento em que o pique estava tão bom que o Fleury saiu para comprar cigarro e eu peguei o baixo pra brincar. Quando ele voltou, cinco minutos depois, a gente já havia gravado outra faixa”, diz Tagliari.
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Pereira liga o sonho a uma conversa que teve com o Tagliari dias antes. “Estávamos falando sobre como o nome Maurício deixou de ser popular, que os que a gente conhecia tinham no mínimo uns 40 anos, nenhum Maurício criança. Imaginamos se era por que, depois que surgiu o termo 'mauricinho', ninguém mais se chamou Maurício.” Bussab concorda: “Esse nome é geracional, remete aos pais dos anos 60 e 70. Hoje tem pouco Maurício, mas houve uma época em que ele era o que Enzo ou Kauã são hoje, tinha como mato”.
O mais curioso é que a maioria dos Maurícios não havia tocado junto. Muitos se encontraram trabalhando pelo fato de Fleury ser dono de um estúdio, e Bussab lidar há anos com a distribuição de discos independentes.
Em estúdio
As gravações aconteceram no final de 2015 e início de 2016. A tônica do som também vinha do sonho de Tagliari. “Foi tudo bem aberto, ninguém trouxe nada pronto, a gente se encontrou e começou a tocar”, lembra Takara. “Tinha essa referência sugestiva ao Miles elétrico, [do álbum] In a Silent Way, e no fim das contas a formação, que é bem inusitada pra mim, refletia um pouco isso, a coisa do sax soprano, da percussão", completa.
“A linha era cada um ficar à vontade naquilo que gosta, sabendo que estávamos inseridos dentro de um coletivo”, completa Badê. “A ideia do Tagliari era fazer uma coisa mais viajandona, instrumental, como o Miles Davis do sonho dele. A gente não ficou discutindo, apertava o rec e saía tocando”, lembra Fleury.
“Não lembro de ter combinado nada. Na real, olhando em retrospecto, foi meio mágico: muito som, muita risada, pouca conversa e a música fluindo. Tanto que quando você escuta o disco todo, sente que cada faixa tem uma onda muito diferente. Foi fruto mesmo de um encontro de vários backgrounds musicais e muita generosidade, um lance bem fraternal”, completa Tagliari. “O disco é isso, música espontânea, sem parar muito pra pensar, sem nada escrito antes, feita muito das influências sonoras que a gente tem, tipo pegar uma ideia que aparecia e brincar em cima dela”, emenda Pereira.
A conexão maurícia — termo cujo significado vem da mesma palavra que dá origem ao termo “mouro” e quer dizer “de pele escura” — não terminou no som. Depois de brincarem com a possibilidade de pedir a capa ao Maurício de Souza, o pai da Mônica e do Cebolinha, lembraram de outro Maurício que não era reconhecido pelo prenome, o DJ e ilustrador MZK, que aceitou prontamente a tarefa de fazer a capa.
O curioso é que essa conexão já estava no ar. "Antes disso eu estava em um projeto com o Boca, do Ratos [de Porão], só com duas baterias — e ele é Maurício também", lembra Takara. E Fleury dividia o palco na banda de Anelis com mais um Maurício, o baixista Mau.
O difícil agora é fazer shows, principalmente devido às agendas dos envolvidos. "Espero que continue divertido, mas só da gente fazer um som já é legal”, empolga-se Fleury. “O principal era sair o disco. Agora que ele saiu, quem sabe uma hora dessas a gente não faz esses grooves e jams ao vivo, né? Já surgiram alguns convites”, emenda Pereira.
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Tagliari, no entanto, vai além: “Outros Maurícios que não estavam no sonho original já apareceram e querem participar. E que turma boa de música! Acho que Mauricio é uma distorção estatística na música — só fera. Alguns, inclusive, são Maurício no RG, mas não no nome artístico. Vale pesquisar”, conclui Tagliari, ainda sonhando. “Já recebemos várias consultas para fazer show. Mas se você fizer uma lista de projetos em que os caras estão envolvidos… Só o Badé e o Fleury já enchem uma página. São músicos muito requisitados. Mas acho que deve rolar algum show e aí a gente pode pensar num volume 2 com formação ampliada. Mas sem muito planejamento. Afinal o espírito é esse jam session, meio free, meio festa."
Créditos
MZK/divulgação