por Ricardo Calil
Trip #196

Nos anos 90, Renatinho Wanderley era nossa maior promessa. Agora ele está de volta

Nós ousamos e apontamos Renatinho o melhor amador do ano no Brasil. Por quê? Ele é o mais radical e carismático. Tem apenas 16 anos e em qualquer sessão de free surf domina a atenção dos fotógrafos com seu surf imprevisível. Limite ainda não encontrou. Ele é a maior esperança brasileira para o próximo mundial.

Esse talento de Santos demorou, mas explodiu... e que explosão! Renatinho, a cada caída, surfa melhor. É o típico caso de sucesso garantido. Ele vai arrebentar no WCT. Surfista de talento ilimitado, Renatinho conta com um patrocínio forte e vai causar sérios danos aos alicerces da ASP. Ele certamente irá ocupar o topo de muitos pódios pelo planeta, basta manter sua atual competitividade, pois talento o moleque tem de sobra.

Renatinho é uma espécie de super-homem. De origem humilde, ele tem a responsabilidade de contribuir para a receita familiar. Seu superpai, Picuruta Salazar, já garantiu que Renatinho é seu sucessor. O Quebra-mar de Santos já deveria ter um campeão mundial, mas Picuruta era o homem certo no momento errado. Renatinho pode ser o escolhido a cumprir a “vingança do Quebra-Mar” – devolver ao pico o título que é seu por direito.

O texto acima é uma colagem de frases tiradas de várias matérias sobre Renato Wanderley. Todas anteriores a 1996, data em que ele chegou ao WCT, a elite do surf de competição, aos 22 anos. Deveria ser o momento de consagração de um dos amadores mais premiados do esporte no país, comparado a Kelly Slater pela revista Fluir naquele início de temporada e apontado por muitos especialistas o cara que iria finalmente trazer o caneco para o Brasil. Mas havia uma prancha no meio do caminho.

“Eu não conseguia mais ver camiseta de lycra, ouvir voz de narrador. O surf de competição me machucou muito”


Depois da primeira etapa do circuito, ele treinava na Austrália quando se embolou com uma prancha perdida, camuflada pela espuma da onda. A prancha de Renatinho voou, e uma das quilhas fez um talho

logo abaixo de seu joelho esquerdo, atingindo os nervos locais. “Eu estava 100% focado, mas tive que correr o circuito aquele ano com 50% das minhas condições físicas.” Foram oito etapas até ganhar uma bateria. No fim do ano, ele deixou o WCT para nunca mais voltar. Ainda correu o WQS, a divisão de acesso, entre 1997 e 2000. Mas os resultados quase nunca ficaram à altura das expectativas, o patrocínio acabou, e ele saiu de vez do circuito mundial.

A partir do acidente na Austrália, a limitação física virou psicológica, e Renatinho começou uma lenta descida ao inferno do surf, uma sucessão de eventos não tão rara no esporte: o desânimo com a rotina de viagens, a ansiedade pelos resultados, o vazio, a depressão, as drogas – no caso de Renatinho, um coquetel que incluía álcool, maconha, cocaína, ácido e ecstasy. “Se você perde na primeira bateria de uma etapa, tem muito tempo livre até a etapa seguinte. Meu problema era gostar de balada. Eu estava rodeado de falsos amigos. E podia ter duas, três mulheres por dia se quisesse. Mas, no fundo, o surf é um esporte muito solitário.” Chegou o momento da saturação, e Renatinho parou de competir. “Eu não aguentava mais ver camiseta de lycra, ouvir voz de narrador.”

Dois anos atrás, Renatinho foi trabalhar como operador de empilhadeira, num terminal de carga do porto de Santos, onde um tio seu é sócio. Trabalhava até 14 horas por dia, numa máquina com capacidade de 2,5 t, ganhando R$ 2,5 mil ao mês. Mas estava menos infeliz do que em seu trabalho anterior. “O pessoal passava de carro pelo terminal, buzinava, gritava: ‘Vamos pra praia. Tá dando onda’. Eu brincava que ia jogar a empilhadeira em cima deles”, conta. “O surf de competição me machucou muito.”

Choro por Andy Irons
Altas ondas, altas gatas, altas viagens. É a imagem de superfície sobre o surf profissional. Pouco se fala dos baixos de um esporte que exige que seus atletas superem cotidianamente seus limites físicos e psicológicos, arrisquem a vida em picos cascas-grossas como Teahupoo ou Pipeline, passem a maior parte do ano longe de casa e da família, enfrentem talvez o pior nível de localismo de todos os esportes, lidem com a pressão da mídia, dos fãs, dos patrocinadores. Esse lado negro só costuma vir à tona em momentos extremos – como o da morte do tricampeão mundial Andy Irons, em condições ainda não esclarecidas. Os relatos de pessoas próximas e as primeiras investigações da polícia de Dallas, onde o corpo foi encontrado, especulam sobre o abuso de substâncias variadas: álcool, drogas ilegais, remédios para insônia, depressão e vício em heroína.

“Eu chorei quando soube da morte do Irons”, conta Renatinho. “Não podiam ter deixado ele viajar. Ele era um dos caras mais legais do circuito. Explosivo, mas coração enorme. Ele e o (irmão) Bruce sempre me convidavam para ficar na casa deles no Havaí.” Podia ter acontecido o mesmo com você, Renato? “Claro.”

Quase todos os obituários de Irons destacaram sua excelência como atleta e sua extrema competitividade, mas não lembraram da contrapartida, dos custos para se manter por anos como atleta de ponta. Manager de surfistas como Adriano Mineirinho e Jadson André, representantes brasileiros no WCT, Luis “Pinga” Campos tem uma teoria particular sobre a morte de Irons. “Para mim, seu maior problema tinha nome e sobrenome: Kelly Slater. Por mais que ele se esforçasse, por mais brilhante que ele fosse, havia sempre um cara na frente”, afirma Pinga. “Quando se fala em superar limites físicos e psicológicos no surf, Slater é a referência. O problema é que ele é uma caixa-preta. Ninguém sabe o que ele faz para se preparar. Um dia eu vi ele fazendo uns exercícios de respiração e alongamento, acho que a base dele é ioga.”

Como Irons, muitos surfistas sucumbem à pressão do surf competitivo, mas não recebem a mesma atenção de um tricampeão mundial. Casos graves como o do carioca Plínio Ribas – que, a exemplo de Renato Wanderley, foi apontado nos anos 90 o possível candidato a um título mundial. Quem conta a história é seu irmão Victor Ribas, terceiro lugar no WCT de 1999, melhor colocação de um brasileiro na história. “O Plínio tinha fama de merrequeiro e sofria com isso. O pessoal tirava sarro dele pelo medo de ondas grandes. Ele acabou se aproximando desses caras, querendo se enturmar. Só que era uma turma que estava pesado nas drogas. O Plínio entrou nessa e não voltou mais.” Depois de várias internações em clínicas de reabilitação e psiquiátricas, ele foi diagnosticado como esquizofrênico e hoje vive na casa da mãe em Cabo Frio (RJ). Há também casos como o do catarinense Neco Padaratz, que quase morreu afogado na bancada de Teahupoo, passou anos fazendo terapia, sem competir nas ondas do Taiti, mas voltou ao local e chegou a tirar 10 em uma onda. Ou ainda do cearense Fábio Silva, surfista promissor criado na favela de Titanzinho, em Fortaleza, que teve sérios problemas para se comunicar em inglês, sentiu-se isolado do circuito e acabou desistindo do WCT em seu primeiro ano.

“Eu era muito ansioso. Hoje meu estilo está mais polido. Só não perdi o medo de ondas grandes”

Para o médico Marcelo Baboghluian, responsável pelo Instituto Mar Azul, em São Paulo, especializado em medicina esportiva para atletas profissionais, esses casos mostram que os surfistas brasileiros precisam enfrentar problemas específicos, diferentes dos seus adversários americanos e australianos. “Muitos reclamam dos problemas de comunicação, do preconceito dos outros surfistas e dos juízes contra os brasileiros, do medo de ondas grandes, porque não estão acostumados com elas aqui no Brasil. É duro dizer isso, mas uma das primeiras coisas que precisamos tratar no instituto é do complexo de inferioridade. Depois, combater a cultura de que o surfista só consegue ficar feliz se está na água, que não precisa fazer a preparação física e psicológica fora dela.”

O manager Pinga garante que as coisas mudaram muito dos anos 90 para cá. “O surf está muito mais profissional, os atletas têm muito mais estrutura. Quando identificamos um talento cedo, fazemos tudo para deixá-lo preparado e focado. O Mineirinho e o Jadson têm acompanhamento psicológico desde o começo da adolescência e viajam sempre pelo mundo para treinar nas ondas grandes e perder o medo. Não há risco de acontecer com eles o mesmo que rolou com o Renatinho.”

Teste cego
Depois de meses trabalhando como operador de empilhadeira, Renatinho aceitou o convite para ser vendedor de uma surf shop em Santos. Foi ali, longe da água, que ele se reconectou ao garoto que, aos 8 anos, ganhou a primeira prancha do pai e se jogou no Quebra-Mar. “O pessoal ainda se lembrava de mim, vinha falar comigo com carinho. Comecei a perder o bode, redescobri o prazer do surf que estava adormecido.” Ele já havia parado com as drogas, sozinho, sem ajuda psicológica. “Eu sentia que dependia da minha força de vontade. Se eu soubesse como era legal ser careta, eu tinha virado antes. Hoje eu não gosto nem de cerveja.”

No dia que dava onda, Renatinho surfava no Quebra-Mar. Quando não dava, corria, nadava, treinava stand-up paddle para voltar à forma física. No ano passado, voltou a competir e a vencer, dessa vez em nova categoria. Ganhou duas etapas de SUP no campeonato santista de surf, derrotando Leco Salazar – considerado o grande nome da categoria e filho de Picuruta, o mestre de Renatinho. Em 2011, ele quer retornar às competições com suas pranchinhas. “Vou tentar o campeonato paulista. Não quero me iludir com a ideia de voltar ao WQS. Mas também não estou pronto para a ideia de competir na categoria master, apesar de já ter idade para isso.”

Renatinho já conseguiu patrocínios de algumas marcas, incluindo a do shaper Ricardo Martins. “Engraçado. Eu conheci as pranchas do Ricardo num ‘teste cego’ que eu fiz para a Trip em 1992. Testei várias pranchas sem a identificação do shaper, e a do Ricardo foi de longe a melhor. Desde então, eu sempre usei as pranchas dele, e ele sempre me apoiou.” Aos 36 anos, com dois filhos e com vontade de se casar com a namorada, Renatinho garante que se sente hoje um surfista melhor do que aos 22. “Eu era muito ansioso, queria mostrar serviço em pouco tempo. Agora meu estilo está mais maduro, mais polido. Só que minha zona de conforto continua sendo de 6 a 8 pés. Não perdi o medo das ondas grandes.”

De volta ao terminal de cargas onde trabalhava para tirar fotos para esta reportagem, Renatinho diz que tem boas memórias da época de operador de empilhadeira, mas agora sabe que seu lugar é a água. Seus antigos colegas concordam. “Uma vez ele derrubou uma carga de peixe e deu o maior prejuízo”, conta um deles. “Com certeza ele dá mais pra surfista do que pra empilhador.”

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