por Carolina Bridi

Grupo de artistas ocupa prédio público abandonado para transformar em squat

Às 9 e pouco do feriado de 1º de maio, uma Kombi com placa de Encantado-RS era abastecida de vassouras, material de limpeza, instrumentos musicais, tapetes, e outras bugingangas em um canto do Largo São João, no centro de São Paulo. Depois que a porta lateral correu o trilho e bateu o trinco, um grupo de mais ou menos 60 figuras vestidas com roupas antigas ou enfeitadas em figurinos de circo e maquiagem neon seguiu pela rua Líbero Badaró. Usando suspensório e peruca, um deles corria empurrando um carrinho de mercado carregado, logo atrás de outro equipado com capacete no estilo militar e uma perna de manequim vestida em lycra pink, empunhando-a como se fosse uma metralhadora. Eles queriam alcançar a frente do cortejo que seguia um pouco sem forma e sem organização pelo centro de São Paulo rumo à rua do Ouvidor, 63.

Passaram enfeitados, coloridos, cantando e batucando ao lado do prédio da Secretaria de Estado da Segurança Pública. “Achamos que era alguma apresentação, filmagem ou coisa assim. Ainda mais que é dia do trabalhador. Não pareciam sem-teto e nem que iam invadir nada. Por isso ficamos só olhando”, diria um policial durante um papo de boteco mais tarde, querendo entender o que aquela gente que parecia bem criada queria ali, invadindo um prédio abandonado que já foi alvo de ocupação de moradia em 1997 e virou cortiço até 2005, quando mais de 600 moradores foram despejados por ação judicial.

Gente que parecia recém-saída de Woodstock. Outros, de um filme Nouvelle Vague, só que em cores, chegaram na frente do prédio e bateram na porta.

 

-       Seu Menon, viemos tomar um café.

-       Não! Aqui ninguém vai ocupar, ninguém vai ocupar!

 

“Não queríamos vir na força, nem arrombar, nem invadir”, diz Alzira Incendiária, uma das articuladoras do grupo de artistas que resolveu ocupar o prédio público inutilizado para transformar em squat. Foi ela quem, passando por ali semanas antes, viu Seu Menon, o vigia, abrir a porta do prédio por acaso. Acabou batendo um papo de mais ou menos uma hora com ele sobre os planos do grupo de artistas que se concentrava havia cerca de um mês para estruturar a primeira ocupação artística de um prédio abandonado em São Paulo. 

“Expliquei que aquele ali era um possível espaço, e que ele e outros três vigias se revezarem em turnos de 12 horas para cuidarem de um castelo sem ocupação não tinha muito sentido”, conta. O recado estava dado, mas não se sabe se completamente compreendido, já que no final da conversa, ela se viu recusando uma nota de 20 reais que seu Menon, compadecido daqueles que buscam um abrigo, seja para morar ou fazer arte, ofereceu como ajuda.

Durante o mês anterior à ocupação, o grupo, chamado Andróides Andróginos, criou um site com área de inscrição para os interessados em fazer parte do squat. Acabaram reunindo muita gente do Rio Grande do Sul, o que Luciano CortaRuas, artista plástico e curador do Estúdio Lâmina, considera natural, já que muitos dos idealizadores são gaúchos. “Reunimos muitos amigos que realmente topavam a ideia de entrar em um lugar sujo, sem estrutura e com perigos ainda desconhecidos. Em uma ocupação é preciso ter uma afetividade muito grande entre as pessoas”. Mas independente da maioria ser do Sul, a ideia é que o local torne-se um espaço aberto para todos. “Queremos introduzir sonho e arte para as pessoas da comunidade”, afirma Alzira, ela mesma de São Paulo, referindo-se aos moradores de rua da região do Terminal Bandeira e Líbero Badaró, e à comunidade das três ocupações de moradia que estão ao redor do prédio.

“Tem espaço aqui e todos que se inscreverem serão recebidos e analisados para saber como podemor dar condições de viabilizá-los aqui dentro e como eles mesmos podem se viabilizar no squat, já que aqui é tudo coletivo, um ajudando o outro e dando sustentabilidade ao seu espaço”, afirma Luciano, garantindo que a ideia fundamental é criar um ambiente de encontro e efervescência cultural.

Ocupação e resistência

Depois da negativa de seu Menon para um cafézinho, o cara da perna-metralhadora pink encenava um ra-ta-ta-tá enquanto outros arrombavam a grande porta de metal com um enorme pé de cabra e uma sequência de investidas de braços e ombros contra a barreira de entrada. A porta finalmente se abriu, a perna pink foi elevada em sinal de vitória e o bloco seguiu prédio adentro.

Entre bandas, músicos, grupos de teatro e artistas plásticos, o grupo mobilizou-se inspirado pelas antigas art squats - ocupações artísticas para morar ou viver, ou os dois, surgidas na Europa no início do século passado e retomadas recentemente em uma subcultura crescente também no Brasil, com ocupações de casas abandonadas espalhadas por São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. Desta vez, foram ocupados 13 andares de um edifício que, ironicamente, pertence à CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) desde 2007 e não é utilizado pelo poder público desde a década de 1980. 

Sem saber, ao serem espalhafatosos acabaram desviando a atenção da polícia e invadiram sem maiores problemas. Estão lá até agora, trabalhando para tirar a craca de poeira grossa que encontraram no chão de taco e fazendo instalação hidráulica e elétrica no resto do prédio a partir dos únicos pontos de água e luz encontrados no térreo.

Andy Marshall, músico e cineasta, conta que, paralelamente ao trabalho de logística que está rolando por lá, as questões jurídicas, como pedido de reintegração de posse, já estão sendo encaminhadas. “Como é um prédio público, entramos com nossos projetos para ter a maior permanência possível, ou ficar para sempre”, diz. Para Luciano, é importante dar um sentido aos prédios ocisosos e oportunidade para artistas que precisam de espaço para realizar seus trabalhos.

No dia 1º de maio, seu Menon acabou carregando uns livros e um punhado de talheres numa bolsa de viagem algumas horas depois da ocupação e voltou no dia seguinte ao feriado para pegar o resto do que lhe pertencia. Acabou ficando, aí sim, para um café, e até deixou 50 reais para ajudar nos investimentos que os articuladores do grupo estão fazendo para tornar o prédio minimamente habitável e estruturado para abrir ao público. “Não podemos receber as pessoas sem dar o mínimo de estrutura e segurança”, afirma Luciano. 

A intenção é lançar o espaço com o Festival de Revitalização Artística ainda no mês de maio, com projeções de filmes, shows, exposições, colação de lambe e outras atividades. A partir disso, alguns andares devem ficar abertos para a comunidade visitar, segundo Talitha Bewlay, uma das articuladoras do grupo. Os espaços estão divididos, basicamente, em uma base do Estúdio Lâmina, com galeria de arte e café, exatamente como funciona no Vale do Anhagabaú há três anos; ateliê compartilhado entre artistas; estúdio Cut Rock Club, que mistura música, moda e biblioteca; espaço para festivais de bandas; alojamento de artistas de outros estados e outros países com a intenção de coprodução e intercâmbio; cozinha coletiva; e base dos Androides Andróginos, responsável pela gestão do squat.

A manifestação da comunidade ao redor tem sido positiva na visão do grupo, incluindo a visita de uma agente de saúde do posto do Terminal Bandeira que ofereceu os serviços a quem precisasse. Mas tem sido comum, também, a necessidade de desfazer o boneco de ocupação de moradia, bem presente na ideia coletiva da cidade. “Algumas pessoas estão ajudando a construir isso aqui, então estão hospedadas aqui, sim, mas esse não é o objetivo final”, explica Talitha. Alzira Incendiária diz que a grande ambição do espaço é criar, mas é óbvio que se as pessoas precisam ficar por ali o tempo inteiro para gerenciar um projeto, a moradia acaba sendo consequência de uma necessidade, e não uma meta.

De acordo com Andy, a ideia é que todas as pessoas tenham uma contrapartida de trabalho para o espaço público. Esta contrapartida, além da troca de conhecimento para o desenvolvimento mútuo dos artistas, passa também pelas questões financeiras. De acordo com ele, a principal fonte de financiamento para a revitalização e sustentabilidade do lugar será através de recursos federais por meio de projetos individiais aprovados em leis de incentivo à cultura. A intenção é também ter, além dos eventos gratuitos, alguns eventos com capitalização para reinvestir no próprio espaço e para bancar cachês.

Cada artista e cada coletivo que se inscreveu no festival tem um projeto a ser executado durante o primeiro mês de ocupação, além do objetivo comum entre todos, que é dar sustentabilidade cultural e artística ao prédio.

Por enquanto, tudo que se tem de grana é o investimento de alguns dos articuladores da ocupação para instalar luz elétrica, chuveiros e vasos sanitários.

Para Alzira, o que está sendo gerado de capital social ali dentro é muito forte, o que reforça sua certeza de um momento histórico marcado pela existência de um enorme pulso criativo. “Sinto que somos um precariado no momento. Não no sentido da falta, mas do não excesso que gera o criativo”, acredita. “A porta está aberta e queremos contracenar com toda a galera ao redor. Isso aqui é o retrato de uma cena muito forte”, define.

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