O último dos democratas

Conheça a estranha história do Democrata, o carro vintage brasileiro que nunca existiu

No interior do Rio Grande do Sul, esconde-se o maior mistério da indústria automobilística brasileira. Aquele que seria o primeiro carro projetado e construído no país e acabou alvo de boicotes e de uma CPI. Conheça a estranha história do Democrata, o carro vintage que nunca existiu

O sedã vermelho de duas portas, estacionado dentro de um galpão de cerca de 1.000 m2, em Passo Fundo (RS), é um enigma. A carcaça reluzente e o motor italiano de seis cavalos levam o observador desatento a uma miragem: embora esteja ali, esse carro jamais existiu.

O Democrata é um carro fantasma. Nos anos 60, quando a indústria nacional de automóveis ainda engatinhava, o empresário Nélson Fernandes, hoje dono de um cemitério vertical em Curitiba (PR), decidiu criá-lo. O nome veio de uma consulta popular – “maciça”, segundo Fernandes. Seria o primeiro veículo inteiramente nacional. Um protótipo foi montado na sede de sua empresa, a Ibap (Indústria Brasileira de Automóveis Presidente), em São Bernardo do Campo, com a supervisão de Chico Landi, então o maior piloto do país e o primeiro brasileiro a dirigir um Fórmula 1.

“O carro, na verdade, é uma merda”, ri o advogado Roberson Azambuja, dez anos depois de adquiri-lo. “Era para ser macio, era para ser esportivo, e não era nada disso. Na época, havia veículos muito melhores, como o Galaxie, da Ford. Mas ele era importante porque era um precursor nacional.”

Os Azambuja só conheciam o veículo pela revista Quatro Rodas. Foi a publicação quem começou a desmontar o sonho de Nélson Fernandes. Em uma reportagem de 1967, constatou que não havia encomendas de peças para a produção do Democrata – ou seja, o carro não estava sendo produzido, apesar de atrair 87 mil potenciais “sócios” e compradores pelo Brasil. Fernandes correu o país, com o carro sobre o caminhão, vendendo “certificados de propriedade da empresa” que dariam preferência para a compra do carro, assim que a produção começasse. A produção, no entanto, ficou restrita às carrocerias. Algumas carcaças de fibra de vidro foram produzidas, à espera do motor fabricado na Itália, sem que nenhum veículo jamais deixasse o pátio da empresa.

Sem fábricas que pudessem ajudá-lo a desenvolver o motor (havia um boicote das empresas estrangeiras instaladas no Brasil ao projeto), o carro foi alvo de uma confusa CPI, cujas maiores provas eram as reportagens publicadas na imprensa – por exemplo, sobre um carregamento de 500 motores italianos apreendidos em águas internacionais, antes de chegar ao porto de Santos.

Era época do regime militar, e a fábrica foi interditada sob a acusação de o projeto ser inviável. “O exército mandou que eu fosse investigado. Mandaram invadir a minha casa para saber qual era minha ligação com Juscelino Kubistchek”, relata o empresário. O nome da fábrica, Presidente, foi inspirado em JK, mas Fernandes diz que nem sequer o conhecia, apenas o admirava.

O empresário só seria inocentado judicialmente 20 anos depois. Era 1986, e no terreno de São Bernardo só restavam carcaças apodrecendo e os trilhos da linha de produção. “O coração do Democrata estava abandonado e transformado em sucata, vendida a peso”, relatou o jornalista Roberto Nasser, autor do livro Democrata: o carro certo na hora errada (2005).

Não havia mais tempo de retomar o projeto. Em 1989, por meio do caseiro que tomava conta dos restos da fábrica, o mecânico José Luiz Finardi, hoje com 58 anos, propôs a Fernandes a compra do que havia no local. “O dinheiro daria para comprar uma casa”, lembra. Encontrou dois carros prontos, outros cinco semiproduzidos e 28 carrocerias. Havia também cinco automóveis incendiados – pelas contas, 30 motores haviam sido roubados.

Viu rodando e chorou
O protótipo vermelho que rodou o país, por sua vez, também estava abandonado, mas com outro proprietário. Pelo preço de um automóvel velho, Finardi o arrematou. Refez as grades, os bancos e o motor. O painel de jacarandá foi remontado. “Na parte de mecânica não havia nada. Era preciso fazer tudo de novo.” Em 2000, na festa dos 500 anos de Descobrimento, o levou até Brasília. Lá, reencontrou Fernandes. “Quando ele viu o carro rodando novamente, começou a chorar.”

Em 2002, Finardi o vendeu para os irmãos Rogério e Roberson Azambuja, ambos de Passo Fundo, que dividiam com o mecânico a amizade com o jornalista Nasser. O escritor, aliás, conseguiu comprar um modelo verde, mas sem o motor original.

“Havia aquele mistério, aquela dúvida sobre como era. Era o primeiro carro que ele montou e levou para o Brasil inteiro”, diz Roberson, que tinha 4 anos quando Nélson Fernandes anunciou o protótipo, em 1964. “Quando cheguei na oficina [de Finardi], o Democrata estava semidesmontado. E eu estava louco para dar uma volta.”

Roberson comprou o veículo sem as rodas originais. As que acompanhavam o Democrata eram de Veraneio, a SUV da GM produzida entre 1964 e 1994. Sob a supervisão do mecânico Wilson Souza dos Passos, 65 anos, a partir do estepe original, foi feito um molde para que elas voltassem ao antigo padrão, com o selo da Ibap que também aparece no volante e no porta-malas. “Se encontramos a peça original, vamos por ela. Senão, é precisar refazê-la com base nos moldes originais”, afirma Wilson, especialista em motores carburados.

"Ouço muitos filhos de antigos acionistas dizendo: ‘Meu pai morreu deprimido por causa desse carro’”

Restaurado de acordo com o protótipo de 1964 de Nélson Fernandes, o Democrata voltou às ruas. Embora utilize frequentemente uma Mercedes Benz SLK 5500 nova no caminho de casa para o escritório, no centro de Passo Fundo, o advogado costuma tirar do galpão duas ou três vezes por semana um carro antigo para fazer o trajeto. Ele tem mais de uma centena deles, divididos entre o galpão, a oficina e um pavilhão de exposições na cidade do interior gaúcho, a maior parte relíquias da indústria brasileira de foras de série dos anos 1980 – como os inacreditáveis modelos Del Rey limusine e Monza conversível.

Como há quase 40 anos, o Democrata voltou a ser uma coqueluche. Não mais como a peça que anuncia o futuro da indústria automobilística brasileira. Agora ele é parte de um passado que não chegou a se concretizar em encontros de colecionadores de carros, levado pelas mãos dos irmãos Azambuja. “Ouço filhos de antigos acionistas dizerem: ‘Meu pai morreu deprimido por conta desse carro’.”

O “carro fantasma” está temporariamente fora de combate, à espera de um jogo de bronzina de biela do motor original italiano, o que pode demorar um ano. A última viagem que fez foi com estudantes da Universidade Federal de Passo Fundo. Enquanto a peça não vem, um Dodge e um Maverick são os únicos felizardos a contemplar o automóvel que nunca existiu.

Créditos

Imagem principal: Gabriela Mo

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