por Redação

O problema nacional não é a imoralidade congênita, e sim a amoralidade patológica

Outro dia me deparei com um ser amoral. Um indivíduo brasileiro da categoria amoral. Achei que os amorais estavam extintos no Brasil. Ou ao menos fizessem apenas parte de uma raça sob o risco de perecimento, em companhia do mico-leão-dourado e de alguma lagarta de cinco patas. Algo que você só fica sabendo pela imprensa, por necessidade de diversificação de temas, mas não se depara na esquina, ali, comprando leite.

Talvez realmente estejam em vias de extinção, o que só faz aumentar a curiosidade sobre o espécime. Pois é difícil imaginar que amorais ainda existam. Amorais estão entre os piores do pior da espécie humana. Não porque sejam os mais maldosos. Não são. Amorais são até dóceis. Mas são piores que os imorais, porque amorais são incorrigíveis. Pior, não contam com antídoto.

A imoralidade tem cura. A amoralidade não. O imoral planeja, sorrateiramente, a fraude ao credor. Franze a testa sob o risco de ser apanhado e anda às espreitas, com desculpas na manga para o caso de ser pego. Não nega o sistema, apenas tenta superá-lo vez ou outra, num momento de distração. Mas não o ignora nem lhe dá de ombros. Procura apenas derrotá-lo, aproveitando-se de suas falhas intermitentes. É o que os investidores tentam fazer no mercado de ações: 'beat the market' é a expressão. Ou seja, o imoral joga o jogo jogado e apenas tenta dar a cotevalada certeira quando o juiz estiver desatento. Se for pego e expulso, vai para o chuveiro e não discute o ato cometido. Sabe que está errado.

Por isso não me parece muito preocupante a corja imoral. Sobretudo aquela entre os políticos. Para ser um imoral político, o sujeito precisa fazer toda a mise-en-scène moralista. Fulano sobe no caixotinho e condena, veementemente, a prática do racismo. Saliva com ferocidade contra a corrupção. Berra os 10 mandamentos e chora ao carregar o bebê doente no colo. Pouco importa que viole tudo às escondidas. Pois o que importa é que o imoral, assim agindo, preserva o sistema, permitindo que a moldura de moralidade sobreviva e, um dia, quem sabe, pegue o imoral de calças curtas, cometendo o adultério contra a moralidade.

É por isso que, no Brasil, quanto mais solidificada a democracia, mais estamos livres do perigo dos imorais. Enquanto tivermos uma classe média escandalizada e uma imprensa ativa, políticos fazendo a pilhagem de madrugada são apenas a exceção que confirma a regra. E ainda temos esperança. Passarão, aos poucos, a ser um percentual de anomalia do sistema, perfeitamente aceitável portanto. Algo como o que representa uma taxa de desemprego de 5% ano para o campo econômico. Faz parte do pacote capitalista.

O que é preocupante, isto sim, é a negação do jogo. É a vó e a neta paulistanas confessando abertamente na mesa do jantar, em discreto contentamento pelo momento de cumplicidade de gerações: 'Ele rouba, mas faz'. Isso sim causa calafrios.

Pois outro dia vi um tipo assim, um ser amoral da mais clássica estirpe. E por alguns minutos toda uma geração de amorais brasileiros me veio à mente. O indivíduo manifestou sua amoralidade na seguinte historiazinha: contou, tranqüilamente, que copiava os textos desta coluna e os colava em espaço próprio, surrupiando a autoria. O amoral contou a história e ainda esperou por uma resposta de tolerância, um 'deixa pra lá' displicente. Não obteve. Indagado e informado da seriedade do ato, veio com a frase suprema da amoralidade: 'Ué, mas todo mundo faz!'.

É difícil imaginar que indivíduos que nasceram e foram criandos dentro da família cristã, que foram ao colégio privado, que freqüentaram aulas de balé ou natação, que estudaram um pouco de piano e foram em festinhas inocentes com os colegas, possam, sem ruborizar, dizer em alto e bom tom: 'Ué, mas todo mundo faz!', e com isso livrar-se do peso da culpa.

Por um segundo pensei em retrucar com agressões e cheguei mesmo a pensar em revelar a identidade do gatuno. Mas de nada adiantaria. Amorais, por definição, não se dão conta do pecado. E aí reside o grande perigo da espécie, tão típica de nosso tropicalismo. E depois haveria ainda o risco de me surpreender com as reações e ver toda a turba de amorais em manifestação de solidariedade com o infrator, todos perguntando 'qual o problema?'. Como estou voltando pra terrinha, não quis correr o risco. É melhor crer que nosso país sofre do mal menor, o da imoralidade congênita.

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