O que vê o colunista
O motor das idéias de um colunista bissexto e enferrujado custa a pegar depois de um mês de férias na praia. Falar o quê? Falar para quê?
Por Redação
em 21 de setembro de 2005
FOTO ARQUIVO MARCOS VILAS BOAS
O colunista toma assento diante do computador. O recomeço é difícil. O colunista está com medo de opinar sobre qualquer coisa. Acha inútil. O colunista vai no tranco. Na melô da dicção. Na associação automática. Começo. Começo. O colunista acha que dá para dizer que o começo da era em que vivemos é o atentado às torres gêmeas, a cena bíblica que aconteceu tardia em setembro de 2001.
É um suicídio coletivo. Um homicídio ainda mais coletivo. Um suicídio homicida. Um símbolo. Um tema recorrente. O colunista tenta enxergar relações. Inventar relações. O colunista está aqui para isso. O colunista, fora da praia, vê agora suicídios homicidas para tudo quanto é lado.
O colunista vê uma era marcada por suicídios homicidas. Os recursos naturais da Terra sendo consumidos de maneira inconseqüente. As elites nacionais se recusando a distribuir renda e educação. As populações abandonando culturas milenares em troca de nenhuma outra. As populações abandonando a própria falta de cultura por uma religiosidade simplória. As populações engordando ansiosamente. As populações querendo emagrecer ansiosamente. E a guerra no Iraque. E a reeleição do Bush. E o colunista escrevendo certezas sem certeza nenhuma.
Quando o colunista diz ?o colunista?, ele não o faz apenas para repetir o estilo surrado de muitos outros colunistas, igualmente barrocos. Ele o faz para expressar um desconforto com o papel. Este tem dúvidas demais. E o papel dos colunistas é o de expressar certezas. É essa a performance que o público espera dos colunistas. Colunistas são os pastores da mídia, essa instituição politeísta e mitomaníaca que Walter Benjamin chamou de ?a religião dos realistas?.
Disparando certezas duvidosas e dúvidas certas, do seu humilde púlpito, este colunista lembra-se repentinamente do colunista mais lido do país. O modelo de sucesso. Diogo Mainardi. O prodígio não tão menino. O metralhador de certezas. O Aracy de Almeida da grande opinião. Sem o talento vocal, é verdade. O Pedro de Lara da análise importante. Sem a graça.
O colunista tem saudades do mar. O colunista tem vontade de transformar sua página numa coluna exclusivamente ecológica. Por outro lado, ele repara que essas questões só o atormentam quando ele está com as mãos no teclado. Durante as férias, o colunista leu tranqüilo que, em um só ano, mais de 2 800 produtos químicos foram lançados no mercado. Apenas 12 tiveram seus efeitos tóxicos testados. O colunista leu também a piada de que em breve o número de coisas fabricadas pelo homem vai superar o número de espécies biológicas da Terra. O homem quer empatar a partida com Deus. De volta à cidade, o colunista se pergunta: deve ficar se preocupando com o destino do Universo ou sai para fazer compras no shopping Iguatemi?
O colunista tem saudades do mar, onde as certezas se diluem, onde as dúvidas se dissolvem e até mesmo são prazerosas as sensações de que um banhista é ao mesmo tempo o centro do Universo e uma sardinha insignificante, à espera do peteleco final de uma tsunami.
*Carlos Nader, 40, é videoartista e ainda está pegando no tranco. Seu e-mail é: carlos_nader@hotmail.com
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