O príncipe da decadência

por Redação
Trip #172

Livro da Taschen resgata a memória de Bunker Spreckles, surfista-problema dos anos 70


 

 

 

 

 

 

Surfista que melhor encarnou o espírito de excesso dos anos 70, Bunker Spreckles tem sua memória resgatada em um fantástico livro da Taschen

Dândi, reencarnação de príncipe havaiano, menino prodígio do surf, milionário aos 21 anos, Bunker Spreckles teve uma vida curta, cheia de excessos. Enteado do ator Clark Gable e neto do barão do açúcar Claus Spreckles, que introduziu a cultura da cana no arquipélago havaiano, Bunker desde cedo aprendeu a viver sob os holofotes da mídia e a manipulá-la como poucos, a ponto de contratar seus próprios fotógrafos para acompanhar suas aventuras pelo mundo. Sua história é contada em primeira pessoa no livro Spreckles, surfing’s divine prince of decadence, lançado pela Taschen.

Nascido em 1949, Bunker aprendeu a pegar ondas cedo, quando morava no Havaí. Por seu avô ter apoiado o último monarca havaiano, rei David Kalakaua, pôde aprender os segredos da cultura local vetados aos estrangeiros comuns, entre eles o surf, o esporte dos reis, já que velhos kahunas o proclamaram a reencarnação de um príncipe local.

Adolescente, voltou ao continente, onde desenvolveu seu surf nas praias da Califórnia. Aos 18, deu as costas à fortuna da família e foi morar no North Shore da ilha de Oahu, um lugar ainda virgem em plenos anos 60, vivendo de construir pranchas e de surfar o máximo que podia. Quando começou a ser notado pela imprensa mesmo no Havaí, se retirou para ilhas mais afastadas.

Mas o surfista nômade e sem dinheiro no bolso tornou-se um herdeiro aos 21 anos, e a simplicidade deu lugar a um milionário excêntrico, sempre disposto a pôr os limites à prova e a mostrar tudo para o público.

Décadas antes da febre dos reality shows, Bunker Spreckles contratou uma equipe de fotógrafos e cinegrafistas para registrar todos os seus passos, para o documentário The player, alter ego que acabou tomando conta de seu criador. Durante as filmagens, ficou evidente seu talento para arrumar confusão. Em 1975, ele rumou para a África do Sul em meio ao apartheid, confraternizou com os moradores negros e arranjou encrenca com a polícia branca, que quase o prendeu três vezes por porte de maconha. No meio da edição do documentário, em 1977, Bunker morreu, aos 27 anos, oficialmente “de causas naturais”, versão difícil de acreditar.

Entre a equipe contratada para registrar cada segundo do surfista que melhor encarnou os excessos do rock’n’roll dos anos 70 estava o fotógrafo de surf Art Brewer. São suas fotos que dão corpo ao livro da Taschen, junto com uma longa entrevista dada ao co-roteirista de Dogtown and Z-Boys, C. R. Stecyk III, um mês antes de Bunker morrer. Abaixo, os melhores trechos da entrevista gentilmente cedida pela Taschen:

Como você reage ao fato de ser chamado de pessoa mais decadente do surf? Eu suponho que é razoavelmente satisfatório ter esse tipo de reputação, porque eu a construí sozinho, sem a ajuda de marqueteiros, fabricantes ou shapers.

Como você se vê no panteão do surf hoje? Se você puser na água, em Sunset, todo mundo que é alguém hoje e se houver boas ondas por lá, acho que, se for o meu dia, posso surfar tão bem quanto qualquer um, se não melhor. Ainda me sinto capaz de fazer isso, de surfar desse jeito. Mas o negócio sobre como eu surfo é que nunca fui muito regular. Porque sempre tinha problemas que não me deixavam ter regularidade na água. Coisas aconteceram comigo ligadas a drogas, mulheres ou violência física que me impediram de manter sempre uma performance de primeira classe.

Por que você surfa? O que quer tirar disso? Boa forma e prazer. Algo maravilhoso de olhar, algo maravilhoso para pensar numa sociedade que está bastante fodida. É uma coisa que você pode fazer e que é simplesmente maravilhosa, estética.

Você se relaciona com as origens pagãs do surf? Sim, acho que é uma arte primitiva. Eu mesmo não chamaria o surf de pagão, como fizeram os missionários. Eles não sabiam do que estavam falando sobre surf, como também sobre muitas outras coisas. Sinto que quando estou descendo ondas perfeitas alcanço na minha mente o que pode ser chamado de “consciência de Cristo”. Sinto que o surf se relaciona ao Evangelho Aquariano de Jesus Cristo, que supostamente são as palavras verdadeiras que Cristo disse quando estava vivo. Eu relaciono o surf a ar, terra, fogo e água. Esses são agentes de limpeza. Surfar limpa o corpo físico e, se você está afinado com o que está fazendo, o surf é um tônico que limpa a mente também. Mas não acho que o surf ajude psicologicamente. Não acredito que o surf melhore nenhuma pessoa na verdade. Eu costumava pensar que se um cara pudesse surfar ele seria irreal. Uma pessoa fantástica. Mas, depois de me envolver com o mundo do surf por tantos anos, descobri que isso não é verdade. Um cara pode ser um ótimo surfista e ainda assim ser um babaca completo.

“É satisfatório ter a reputação de pessoa mais decadente do surf porque eu a construí sozinho, sem a ajuda de marketeiros ou fabricantes”

Você acha que esse espírito acabou, com as competições de surf? Para mim, sim. Mas, para algumas pessoas, acho que é bom. Não sou a pessoa certa para falar de competições, só participei de três.

Considerando a sua herança, como você sente que se encaixa no Havaí moderno? Não tenho certeza de que me encaixo aqui ainda, no plano das coisas. Só sinto que estou praticando a minha arte de surfar. Isso é o que estou fazendo.

Como você se deu conta de que ia herdar uma fortuna? Em primeiro lugar, eu não ia herdar nada. A única razão pela qual herdei meu dinheiro foi por conta de uma seqüência de eventos, por conta do jeito que as pessoas morreram na minha família. Se meu pai tivesse vivido, muito provavelmente ele teria gastado todo o dinheiro que eu herdei.

Como assim? Ele esperava que minha avó – a mãe dele – morresse. O dinheiro que ela tinha iria para ele e suas irmãs. Como ele iria ganhar esse dinheiro, estava gastando o dele. Ele estava só esperando. Mas morreu antes, e ela me deu o dinheiro que teria dado a ele.

Ganhou algum dinheiro quando seu pai morreu? Nada, porque ele gastou sua fortuna toda.

Quanto? Perto de uns US$ 50 milhões.

Em que ele gastou? Carros, iates, mulheres, esposas, viajando, se divertindo, fazendo festas, em casas, jogando. As coisas materiais normais.

Teve uma época em que você achou que não receberia o dinheiro? Durante um tempo eu não pensava nisso, até que, de repente, em 1961, eu tinha 12 anos, e meu pai morreu. Eu ia receber um dinheiro dele, mas não muito. Mas aí minha avó morreu em 1968. Ela viveu sete anos a mais que ele. Daí os advogados me disseram que eu ia herdar o dinheiro.

Você diria que a sua família rompeu com você por ter virado um surfista? Sim. A minha família imediata rompeu comigo.

Quando você realmente ganhou o dinheiro? Quando eu fiz 21, fui ao banco e peguei o dinheiro.

Em espécie? Exatamente.

E o que fez com ele? Gastei.

Gastou? Gastei e fiz investimentos.

Quando você retirou o dinheiro do banco em espécie, como saiu do banco? Num carro-forte.

E para onde levou? Para a minha caverna secreta.

Como você imaginava que seria ter dinheiro? Não tinha a menor idéia. Descobri que me deu certo poder. Certa liberdade para fazer coisas que eu não conseguiria antes, como viajar. Eu pude comprar coisas que queria, como carros, seguros, coisas assim. Pude mudar para o bairro que queria, para uma boa casa, e aprendi a fazer shape. Por fim, eu tinha tempo para surfar, muito tempo para surfar.

Como foi sua passagem pela África do Sul? Que tipo de país você encontrou? Opressivo, retrógrado, idiota. Penso que, no aspecto físico, o lugar é maravilhoso. Mas mentalmente é uma piada. A maioria das pessoas de lá pensa que vai pegar todos os negros e acabar com eles. Vão usar todas as suas armas, todo o seu dinheiro e toda ajuda internacional para manter essa situação de apartheid. Imagino que, para os negros, qualquer coisa é melhor do que o que eles têm agora, que é uma cacetada da polícia na cabeça ou um cachorro mordendo suas bolas ou uma bala na cabeça ou prisão perpétua. Os brancos acham que eles estão tão por cima por lá, mas na verdade não estão.

Sua situação com a polícia por lá foi muito crítica? Sim, às vezes. Em algumas ocasiões tive de circular com rédeas curtas.

O que incomodou a polícia? O jeito que eu dominei uma cidade.

Que cidade? Jeffreys Bay.

Como você dominou? Só de estar lá, com muito dinheiro, gastando um dinheirão, contratando gente para trabalhar para mim. Gerenciando um hotel todo. Estávamos fazendo um filme por lá. Tínhamos roadies para vigiar as pranchas e cuidar do equipamento de filmagem, essas coisas.

E você ficou na miúda? Rolou uma boa dose de ciúmes e ressentimento contra mim por lá. Eu era jovem, tinha uma mulher linda comigo, tinha muito dinheiro. Na África, você precisa se ligar porque, se dá uma errada e não está com uma pessoa que entende o que está acontecendo, você está enrascado. Quase fui preso por drogas três vezes na África do Sul.

Por maconha? Você é preso só por causa de maconha. É um crime grave. Dez anos na cadeia por porte. Você precisa ficar esperto.

Você acha que armaram contra você? Sim, eu descobri uma duas armações pra cima de mim por lá, mas do jeito que eu me viro não tinha como eles botarem as mãos em mim.

Voltaria à África do sul? Sim.

Quando começou a se envolver com as mulheres? Comecei realmente a me ligar no jogo quando tinha uns 19 anos. Antes disso eu saía com mulheres, mas sempre sentia que tinha uma espécie de lapso na minha cabeça, uma lacuna. Eu não me preenchia. Não me satisfazia só com sexo. Pensava que tinha algo errado com meus relacionamentos. Daí eu descobri que era a minha perspectiva sobre toda a situação que estava ferrando as coisas. Então essa perspectiva sobre como dominar as mulheres mudou, e a lacuna na minha cabeça foi preenchida.

“Surfar parecia ser a única coisa a fazer depois de tomar um ácido. Era bem melhor do que tentar ler a mente das pessoas ou entrar em uma tangente alucinógena”

As drogas tiveram um papel na sua carreira de surfista? Certamente.

De que tipo? Drogas e surf meio que seguem lado a lado, no sentido de que esse é o estilo de vida em que drogas são mais ou menos um risco do ofício, como no mundo do rock.

Existem drogas que são boas de tomar surfando? Yeah. LSD, quando começou a ficar popular. Acredito que foi um fator importante para a mudança das pranchas. Elas ficaram menores. O surf ficou mais radical. As pessoas ficavam tendo alucinações, visões e vibrações, revelações espirituais. Surfar parecia ser a única coisa a fazer depois de tomar um ácido. Era bem melhor do que sentar no quarto de alguém olhando para as pessoas, pensando que você conseguia ler a mente delas ou entrando em alguma tangente alucinógena. Penso que as únicas drogas que levaram o surf para outro nível foram as psicodélicas, os cogumelos, a mescalina, a psilocibina. Outras drogas estão disponíveis, mas não sei se são boas porque são um pouco como uma anestesia. Elas te deixam tão chapado que desligam seus sentidos e você pára de perceber as correntes à sua volta. Elas te chapam.

Que drogas em particular? Acho que maconha te deixa chapado para surfar. Cocaína e heroína tiram a radicalidade do seu surf.

Que tipo de coisas você experimenta? Meu visual, basicamente. Meus pensamentos, meu jeito de encarar a vida, pessoas, mulheres, a mídia, TV, filmes, discos. Eu sigo todas as loucuras que aparecem, como skate, que teve um ressurgimento. Se algum brinquedo novo sair eu tento ver se essa maluquice vai pegar, qual será o mercado para isso e se alguém vai conseguir fazer virar. Eu sigo a cena do rock bem de perto. Sigo os músicos, o que os roqueiros vestem e que instrumentos eles estão tocando, que amplificadores eles têm. Acompanho como as suas turnês são gerenciadas. Tento estudar isso. Acompanho tudo isso lendo revistas de rock’n’roll. Tento aprender todas as informações pertinentes do negócio da música. Tenho muito interesse pelo negócio da música.

Como? Escrevo letras e sou vocalista. Mais que isso, imagino. Estive numa banda. E também sei dançar. Sou capaz de fazer qualquer passo de dança americano já inventado.

Que tipo de música sua banda tocava? Imagino que dê para descrever como heavy metal.

Você vê o surf como arte? Sim, pode-se vê-lo como um esporte de arte.

Agradecimento especial: Marcello Serpa


 

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