O léxico corporal de Julia Niemeyer

por Autumn Sonnichsen
Trip #269

Uma mulher construindo a própria narrativa e criando uma vida única e inteligente, fazendo algo prático para ter um planeta mais equilibrado

Julia Niemeyer é carioca, bióloga, professora de francês, vegana, jogadora de futevôlei e dona de uma bunda que deveria ser incluída no léxico do português brasileiro. Descrever a Julia de maneira linda e inteligente não é tarefa difícil, mas ela acaba de me enviar uma mensagem em que diz: “Hoje vejo que não somos as mesmas pessoas a cada segundo, não precisamos ser e temos que nos aceitar como seres em eterna mutação”.

Talvez essa frase a descreva melhor que qualquer outra coisa que eu poderia escrever. Hoje ela é tudo o que diz acima, mas talvez amanhã não seja. Hoje ela é sua, mas pode ser que amanhã já não seja. Ela é daquelas que fazem coisas impressionantes – em seu mestrado de biologia criou um framework para a restauração florestal, é bióloga e se enfia em mapas, modelos e programas; gostava muito de física na faculdade e fala com propriedade sobre a soberania alimentar e como equilibrar o corpo com a natureza.

Atualmente trabalha para entender melhor os fatores socioeconômicos que afetam as taxas relativas do desmatamento e da regeneração natural – sobre isso, ela fala o seguinte: “Não precisamos de mais área desmatada sendo utilizada para replantio pensando em alimentar a população crescente. É preciso aumentar a produtividade em áreas que já têm produção em andamento, diminuir o consumo e o desperdício exacerbado, depois pensar em recursos, principalmente o da carne, e assim melhorar a distribuição da alimentação. Esses são os principais causadores da fome mundial”.

Logo menos Julia fará as malas para seu doutorado na Austrália e levará junto sua mulher, Bianca, com quem namora há seis anos. Em suas horas vagas, Julia faz mais coisas maravilhosas, como dar aula de francês e jogar futevôlei num nível que só posso descrever como foda. Viaja, participa de campeonatos, e, às 8 horas da manhã, já está na areia para treinar, todos os dias.

É visível como o esporte a transformou, não apenas seu corpo, mas também a transformou em uma mulher mais dedicada, mais firme, capaz de transbordar toda sua potência através da pele. Fora que, quando você olha para Julia naquele biquíni estampado e as coxas cheias de areia, a vida carioca não só faz sentido, mas também nos obriga a fazer planos imediatos de mudar para Ipanema e vir treinar com ela todos os dias às 8 horas da manhã.

Hoje, porém, é um dia complicado, pois a polícia está invadindo a Rocinha aqui no Rio de Janeiro. A cidade e seus habitantes tremem com a incerteza e o medo que não deveriam ser a “incerteza e o medo de sempre”, mas que infelizmente são. Julia sabe disso: “São os favelados negros os que mais sofrem, pois não há oportunidade para eles. Se não existe oportunidade nem pra nós, que somos privilegiados, imagina para eles”, acredita.

E Julia pensa e milita muito sobre essas questões, em diferentes nuances. “Não existe política de reintrodução de ex-presidiário na sociedade, sequer temos educação básica, e nenhum país avança sem isso. As pessoas não sabem cortar o mal pela raiz. Com o poder atual no Brasil o país não vai pra frente e vai ter guerra sim. Espero que um dia a sociedade reflita e veja que somos um bloco só e que a luta é contra o poder, e não nós contra favelados e favelados contra nós”, conclui Julia, que atribui essa distorção a uma estratégia dos políticos para que a gente sinta que está um contra o outro, esquerda, direita e favelado. “Mas nós somos tudo a mesma coisa.”

Quando olho para a Julia, vejo uma mulher construindo a própria narrativa e criando uma vida única e inteligente, fazendo algo prático para ter um planeta mais equilibrado. Ela vem com suas histórias, seu sorriso nervoso e hábitos de quem não se conforma com o mundo em que nasceu. Com a mochila nas costas cheia de roupas suadas, castanhas e livros em francês, ela ainda chega com esse seu olhar de corça, que te guarda e te transforma, te prende e não te solta.

Créditos

Imagem principal: Autumn Sonnichsen

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