André queria viver surfando no Havaí, mas, para isso, teve que caçar porcos selvagens
Aos 52 anos, André da Montanha leva um vidão. Chinelo, bermuda, barba por fazer, pit bull na coleira e conversa fiada com os amigos na praia de Pipeline. O sol caindo em glória no mar havaiano. Depois de quase 25 anos na ilha de Oahu e com um currículo de perrengues que justifica a presente reportagem, o boa-vida está pronto para amarrar o burro na sombra. Assim que voltar do Iraque, onde vai pilotar jamantas. Na conta de seis gordos dígitos que vai embolsar em um ano ao volante em Bagdá, não entram medo e hesitação. Não é esse o métier de nosso patrício radicado no North Shore. “Trabalhos que ninguém quer fazer eu me amarro. Felizmente. Ou infelizmente”, define sucinto sua vocação, enquanto prepara café e um queijo quente na bem-ajambrada cozinha de sua casa.
Vive agora com sua namorada americana, três carros estacionados na grama e o pit bull supracitado em uma bela moradia na encosta de uma montanha, de onde se vê o oceano. A mesma montanha que lhe rendeu a alcunha presa ao nome André. O morro onde viveu de maneira selvagem, literalmente selvagem, na primeira década de Havaí. Dez anos em que seguiu o caminho oposto de qualquer um que escolhe o North Shore como lar. Em 1984 desembarcou em Honolulu com US$ 11 no bolso. Afastado do circuito previsível do surf vida mansa, nada a fim de arrumar empregos sem um visto, foi acolhido pelas famílias locais das encostas. E, como já era de seu costume no Brasil, tirou seu sustento na unha. Se atirando no mar antes de o sol nascer ou subindo morros armado na lua cheia, André sobreviveu da caça. Lagostas e peixes de dia, porcos selvagens de noite.
Pra que isso? Há de perguntar o bem empregado leitor. Pela mesma razão que faz todo sujeito de 27 anos largar o Brasil pelo Havaí: surfar. Mas, diferentemente de todo sujeito de 27 anos que larga o Brasil para surfar, André tinha outros planos na hora de se tornar um habitante do Havaí. “Aqui eu sou cria da casa. Totalmente diferente dos outros caras. Logo que cheguei, me tornei um Hanai’i, que é quando uma família te acolhe.” O peixe ele dividia com a comunidade havaiana e retribuía a boa recepção local, tão rara em Oahu. A carne ele defumava e fazia um troco em rinhas de galo pela ilha. E dormia como dava, na montanha. Vivia recluso, mas vez ou outra, naturalmente, freqüentava uma festa. Aí sim cortava a barba, arrumava uma camisa, dava um tapa no cabelo. Mas, em vez das tradicionais picapes northshorianas, André chegava para a noitada de cavalo branco, seu veículo favorito por uns tempos.
Desprezo pelo perigo
Caçando porco, Da Montanha gostava de quem era. Carregava sempre dois pit bulls, faca e uma bela espingarda. André mesmo conta: “Perdi muito cachorro nessas caçadas. Vários. O porco é um bicho forte demais, enfia aquela presa no cachorro e já era. Mas quando o cachorro pegava de jeito eu só chegava com a faca e... pau!”, conta, enquanto, na sala do lar, exibe a faca gigantesca e mostra no ar o golpe que acabou com tantos porcos em fúria.
Quando, entre uma caçada e outra, subia na prancha, quase ninguém o conhecia. O cabelão malcuidado, a barba grande e a cara de bicho-do-mato não ornavam muito com a parafina dos surfistas. Até seu estilo de surfar era outro... encarar as ondas monstruosas do North Shore foi também uma prova do desprezo de André pelo perigo. No Brasil, entre Santos e Rio de Janeiro, sua fissura por surf tinha que se conformar com um mar pequeno. Mas caldos em Pipeline não eram exatamente um trauma para Da Montanha. Tanto as vacas de Pipeline quanto os porcos que matava não eram de longe a pior encrenca de sua carreira.
Currículo casca-grossa
Repara: o santista criado no Rio de Janeiro formou-se mergulhador combatente em Niterói em 1976. Trabalhava, com gosto, em empreiteiras subaquáticas. Fazia escada submarina, raspagem de cascos, resgate de barco afundado, ponte. Até que, atrás de aventura e mais dinheiro, nos anos 80 achou uma boa idéia: mergulhar atrás de ouro em garimpos no norte do Brasil. “Foi o emprego mais perigoso que já tive. Quase morri várias vezes. Aquilo lá é uma loucura, só dá bêbado, mercúrio na água, árvore rolando pelo rio em cima de você. E tu enfiado na lama, não enxergando nada, procurando ouro no tato”, explica. Já trocou tiro com piratas fluviais na época que era segurança de balsa no Mato Grosso. Via balas zunindo ao seu lado na lama enquanto saqueava por baixo d’água ouro boliviano na fronteira. Uma mangueira de ar estourou quando garimpava submerso, e ficou preso em galhos na beira do rio enquanto tentava emergir. Piranhas o atacaram, também na opaca lama, “parece um monte de pedrada em cima de você”, define, “fui salvo pelo neoprene”. Tomou facadas, tem 12 cirurgias pelo corpo. A pior desgraça, considera, foi ser soterrado debaixo d’água por mais de 50 min. Só não pereceu por lá mesmo graças à mordida que deu na máscara de oxigênio para segurá-la no rosto enquanto tentava, de algum jeito, se livrar da lama que despencou no rio Madeira. “A vida toda passa rápido pela cabeça quando tu acha que vai morrer. Mas o tempo mesmo não passa”, conta como um mero causo, sempre encerrando com um recorrente “tá entendendo?”, em um timbre casca-grossa.
“Trabalhos que ninguém quer fazer eu me amarro. Felizmente. Ou infelizmente”
Sobrevivente profissional
Orgulho do que fez André tem, é fato. Mas não aceita nem vê graça quando alguém acha que a dificuldade toda significou sofrimento. “Dificuldade pra mim vira um desafio, sacou? Aí eu quero enfrentar o desafio. Eu sempre gostei do que eu fiz, sempre estava com vontade. A vida era meio dura, mas eu fazia meu horário, trabalhava pra mim mesmo”, diz o sobrevivente profissional, “mas agora é outra fase.” Nota-se.
Hoje, no North Shore, André vive com a namorada americana, Monique, uma gentil professora de crianças autistas. Ela é quem ajuda o analógico Da Montanha a catar fotos no computador. “Meu homem é uma celebridade...”, brinca animada ao vê-lo posando para um retrato. Inimaginável há dez anos, ultimamente ele não anda sem acenar para amigos por toda a orla. Os brasileiros, sempre mais novos do que ele, conhecem e falam de André com respeito. “Esse tem história”, é o comentário de qualquer um que a reportagem sondou sobre o bem arranjado protagonista. E, os mesmos brasileiros que André evitava quando chegou à ilha, atualmente ele gosta de ajudar. Usa seu prestígio com os locais para aliviar a barra de um ou outro que vacila. “Novato pisa muito na bola. E havaiano não perdoa isso fácil”, postula. E abre a casa e a geladeira toda vez que vê um conterrâneo necessitado, porque Da Montanha sabe que sobreviver não é pra qualquer um. Agora, surf que é bom isso tem tempo que não faz.
“Meu pé não agüenta mais”, explica, “depois do acidente.” Foi em 2005, tempo em que ele estava realmente sossegado, já bem legalizado nos EUA, morando em uma casa tranqüila, dois carros na garagem, sustentado por um bom emprego pilotando empilhadeiras para um jornal local de Oahu. Seu supervisor, querendo aliviar o expediente do funcionário, deu ré com a máquina. Pegou a perna esquerda de André, que quase perdeu a canela e hoje precisa pegar leve quando pisa. Não se aposentou porque não quer mesmo. Vive da grana que a empresa é obrigada a lhe pagar. Mas simplesmente não se conforma em meramente vadiar em Pipeline.
Na manhã seguinte do primeiro encontro da Trip com André, ele é outro. Barba feita, cabelo penteado para trás e camisa passadinha. O dia é importante para ele. Nem tanto pela entrevista que concede com prazer, mas pelo exame derradeiro que tem pela frente. Vai pilotar uma jamanta pelas ruas de Honolulu ao lado de um instrutor. Se ganhar o aval, poderá embarcar para o Iraque até o fim do ano. Não tem medo, André? “Medo? Medo não adianta... E não vai ser pior do que o rio Madeira. Estou animadaço para trabalhar em uma firma de segurança. Pelo treino, pela grana e porque eu sou meio aventureiro. Me amarro numa pedrada”, encerra, explicando por que atolado em perrengue é que André da Montanha leva a boa-vida.
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