Tortura
Eu sabia que naquele dia eles me moeriam vivo. Mentindo, enganando e contando história, conseguira levar até aquele momento. Era o limite e eu sabia. Não consegui me alimentar. Eles viriam. Cada vez que chamavam alguém no “chiqueirinho do broto” (separação para presos que seriam torturados), meus nervos saltavam para fora dos olhos. Temia que o medo ultrapassasse e virasse pânico.
Então começou a loucura. O ano era 1972 e o país estava em plena ditadura militar. Os militares dominando o país através da polícia que agia com carta branca. Carceragem do DEIC, rua Brigadeiro Tobias, cidade de São Paulo, sucursal do inferno. Os outros companheiros ali selecionados para a tortura daquele dia começaram a surtar.
Meu parceiro de crimes, o Pingo, implorava em lágrimas para que um companheiro de cela lhe quebrasse o braço. O homem teve compaixão; também estava morto de medo. Pulou da grade em cima do braço esticado do parceiro. O estralo foi sinistro. Fratura exposta, uma lasca do osso saia pela pele e o sangue ia formando poça. Pingo gritava, apavorado pela dor. Por certo não imaginava que fosse daquele jeito.
Enquanto gritávamos para que o carcereiro viesse socorrer o parceiro, no fundo do xadrez dois outros alucinados cortavam as veias do braço mutuamente. O sangue esguichou, sujando a todos próximos. Alguém aproveitou a lâmina de barbear já ensanguentada e já foi se cortando também. O “chiqueiro do broto” virou pandemônio.
O carcereiro foi tirando os feridos para levar no hospital. Caso contrário eles se esvairiam em sangue. Naquele dia haviam escapado. Ficariam alguns dias presos para restabelecer, secar os pontos, tempos em que imaginavam negociar e escapar à tortura. Ilusão porque quando os “tiras” “pegassem”, seria pesado. Pagariam caríssimo pela ousadia da automutilação.
Outros foram sendo chamados e algemados à porta do xadrez. Os “valentes” policiais sabiam que estavam lidando com pessoas ensandecidas pelo medo da tortura. Eles saiam cinza esbranquiçados, cabisbaixos e assim meio que cambaleantes. Não, não iria me cortar e nem quebrar nada de mim. Não daquela vez. Dava vontade cagar de medo. E naquele xadrez escondido no prédio não tinha banheiro. Mas dentro gritava: “O que vou fazer, meu Deus, o que vou fazer agora?” o tempo todo.
Fiquei ali encolhido ao lado da porta como um mártir, a espera de minha execução. Um sujeito alto e gago, com dificuldade pediu que eu saísse da porta. Ele iria fazer alguma coisa extrema ali. O que, pensei, a grade era de ferro... Deu alguns saltos rápidos do fundo do xadrez e quando entendi o que ia fazer, ele já batera a cabeça na grade. Caiu, quis levantar, tonto e da cabeça começou a escorrer sangue para a cara.
O carcereiro demorou para abrir a porta da cela. Quando conseguiu, junto com o sujeito magro com a cabeça rachada, outro desesperado saiu correndo para a frente da carceragem. O ferido foi deixado no canto e o carcereiro foi atrás do fujão. Não demorou e o maior tumulto. O “corredor” estava voltando a chutes, pontapés e pauladas. Cerca de uns 20 policiais civis vinham atrás, batendo sem dó no pobre diabo. Só se escutava o som surdo das pancadas e um “hummmm!” que chegava a arrepiar a espinha.
O sujeito da cabeça rachada ficou ali caído numa poça de sangue. Só depois de passar com o trator de esteira em cima do “corredor” e deixá-lo no chão inconsciente é que foram atendê-lo. Saíram carregando-o, sua cabeça pendia e gotejava sangue grosso. Nunca mais o vi. Nem ao fujão. Era um circo dos horrores.
Por conta de todo esse escândalo, as chamadas para as equipes de tortura cessaram. As horas haviam passado e nós nem percebemos. Muitos choques, muita tensão e aquela loucura toda. Ali não havia janela. Era sempre noite de luz acesa. Nem acreditei quando o carcereiro nos passou para a cela na outra galeria. Fôramos dispensados pelas equipes. Pelo menos daquela vez iríamos dormir em paz. Alívio profundo... Mas que paz se amanhã ia começar tudo novamente?
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Luiz Mendes
29/07/2011.