O buraco é mais embaixo

por Alê Youssef
Trip #222

Youssef: ”É cada vez mais impossível emplacar uma lei que faça diferença para sua cidade”

É cada vez mais impossível um parlamentar sério emplacar uma lei que faça diferença para sua cidade, Estado ou até mesmo para o país sem que ele esteja na base aliada do executivo e se venda de alguma forma

Recentemente foram amplamente divulgadas nos jornais de São Paulo várias datas comemorativas criadas pela Câmara dos Vereadores da capital. Entre elas estão o dia dos motoclubistas, o da música cristã, o do morganti (um tipo específico de jiu-jítsu) e até o dia dos cake designers - profissionais de confeitaria especializados em criação e decoração artísticas de bolos e confeitos temáticos para festas.

Essas relevantes celebrações se juntam a outras 302 datas comemorativas do calendário oficial de eventos da cidade, todas elas criadas por leis aprovadas pelos 55 vereadores paulistanos. Destaques para o dia do árbitro esportivo (11 de setembro), o dia dos atores em dublagem (29 de junho), o dia do colunista social (8 de dezembro) e até o dia da conquista pelo Brasil de seu tetracampeonato (17 de julho).

Não é novidade para ninguém esse tipo de prática dos legislativos municipais de todo o país. Já existe até a máxima popular que diz que vereador só serve para criar nome de rua, dar títulos de cidadãos honorários a personalidades “relevantes” ou criar os tais dias comemorativos. O que falta nesse debate é uma avaliação de por que isso acontece, pois o buraco é mais embaixo.

Em qualquer Poder Legislativo os plenários são basicamente divididos entre quem faz parte da base aliada do governo e quem está na oposição. A maioria – que geralmente está do lado do governo, graças às já conhecidas barganhas – dita as regras e pauta os assuntos que realmente importam: orçamentos, planos diretores, mudanças na educação, leis de fomento etc. Tudo é decidido no gabinete do chefe do Executivo e distribuído para algum dos parlamentares aliados apresentar as propostas. Dependendo do governo, criam-se comissões, plenárias públicas para debater os temas, mas o que rola no final é a aprovação daquela determinada lei, no famoso sistema do rolo compressor.

Entretanto, como todos os representantes do povo têm que mostrar trabalho, fazem um acordão que geralmente é aprovado no colégio de líderes partidários para que todos tenham pelo menos um projeto aprovado em cada ano. Aí surgem esses bonitos projetos, que servem única e exclusivamente para agradar e aumentar as bases políticas de cada um dos representantes.

Na real, não existem discussões em plenário, debates acalorados sobre o prodigioso papel das datas comemorativas, uma situação que até constrange os parlamentares mais sérios (sim, eles existem!) e ávidos pelo tal debate legislativo de que tanto falaram na época eleitoral. Mesmo os temas mais relevantes são debatidos no velho esquema “para inglês ver”. Tudo meio de mentirinha, apenas para marcar posição.

Dá pra mudar?

A conclusão óbvia é que se torna cada vez mais impossível um parlamentar bom, cheio de boas ideias, emplacar uma lei que faça diferença para sua cidade, estado ou até mesmo para o país, sem ele estar na base aliada do Poder Executivo, sem participar do jogo dos acordos e, enfim, sem se vender de alguma forma.

Faça uma pesquisa: como anda o desempenho de seu parlamentar no que diz respeito à grande tarefa constitucional que ele tem? Ele criou alguma lei relevante, ele conseguiu cumprir as metas que fizeram você votar nele? Salvo alguns representantes muito aguerridos e bravos, que cumprem um papel de denúncia e geração de debates importantes, a maioria não chega nem perto do que deveria fazer.

Enquanto o sistema político permanecer da forma que está, teremos esse absoluto empobrecimento do papel do Poder Legislativo e ficaremos cada vez mais distantes do grande debate sobre a cidade, o estado e o país que queremos. Mas como se muda o sistema político? Por meio de novas leis que precisam ser criadas e aprovadas pelos mesmos parlamentares que vivem no maravilhoso mundo dos cake designers ou dos lutadores de jiu-jítsu. Sacou?

*Alê Youssef, 38, é produtor cultural, consultor de conteúdo e comentarista do programa Esquenta, da Rede Globo, diretor artístico do Studio RJ e presidente do bloco Acadêmicos do Baixo Augusta. E-mail: alexandreyoussef@gmail.com

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