O Boletim de Ocorrência

por Luiz Alberto Mendes

 

O velho chegou entristecido e estava me rodeando como um menino. Chegava a fungar de vontade desabafar. Por algum prazer mórbido, fiquei em silêncio, tentando sacanear. Mas em seguida puxei conversa, curioso para saber o mal que o afligia.  Às vezes sou generoso, mas ele sabe que não é para abusar. Contou, dramático, que o motorista do caminhão do supermercado onde fazemos compras, havia batido em seu carro. Estava entrando na rua para estacionar e de repente viu o caminhão crescer a seu lado. Tomou o maior susto. Seria esmagado contra a parede, caso o caminhão prosseguisse em seu trajeto. Algumas pessoas que passavam na rua avisaram o motorista do caminhão; ele não havia visto o carro do tio ao lado. Não tinha culpa dessa vez, explicou. Recente, ele produziu alguns acidentes. E, em um deles, o carro veio bater direto na porta do passageiro e adivinha quem estava lá? Euzinho! Daquela vez o susto foi meu. O sujeito desviou a tempo e só acertou o para-lamas de leve. Em outro acidente, ele não viu o desvio para a direita e foi em frente na contramão. Quando avisei, ele ainda tentou voltar à mão correta e bateu a roda na guia, furando o pneu. Eu também estava no banco do passageiro, tenho dado um azar enorme. Depois de 10 anos aqui fora sem nenhum contratempo desses, de repente acontecem dois simultâneos.

O tio já esta com quase 80 anos e precisa de companhia quando tem que resolver algumas coisas. É mais para segurança, porque ele dirige e resolve todas as coisas até muito bem. Registrar o Boletim de Ocorrência na delegacia é uma delas. Fui acompanhá-lo, como tenho feito atualmente. Fomos para o plantão da Polícia Militar, atrás da delegacia, conforme nos foi indicado. O pessoal do supermercado assumira a culpa e pagariam o prejuízo, mas precisavam da cópia do B.O. para documentar. Fui de boa, sem prevenções. Apesar de haver passado mais de 3 décadas preso, hoje sou um cidadão normal, sem problemas. Claro, estava preparado para a canseira e a grosseria habitual dessa instituição no trato com a população. Confesso que estava até curioso para passar por essa experiência. Queria ver como funciona o atendimento da polícia no momento. Entramos, um policial nos pediu informações e, gentilmente, nos levou a um balcão para sermos atendidos. Uma moça, policial feminina, nos atendeu com simpatia e já passou a outro policial que começou a tomar informações e dados do tio. Rapidamente a parte burocrática foi sendo providenciada. Sentei-me a observar as atividades em torno. Policiais despregavam uma placa, tentei entabular ideias como qualquer ser humano faria. Eles não responderam, como se eu não existisse ou não tivesse a mínima importância. Aquilo me aborreceu, mas eu sabia que poderia ser assim. O velho sentou-se ao meu lado esperando o boletim de ocorrência que estava sendo elaborado. Antes que eu pudesse avisar, ele fez uma observação sobre os policiais naquela tarefa de despregar a placa. Não lhe deram atenção também. Insistiu, falou diretamente com eles e ambos sequer o olharam. Em seguida um deles foi reclamar para o policial que nos atendera: não devíamos estar ali a olhá-los. Este nos levou até o portão e pediu que esperássemos ali o papel; já estava quase pronto. Nossa presença havia incomodando os despregadores de placas e nos colocaram quase na rua a esperar.

Ficamos ao sol. Eu até estava gostando do calorzinho gostoso, mas fiquei aborrecido com a falta de educação dos soldados com um velho que podia ser avô deles. Afinal as dependências ali são do Estado, pagamos impostos até demais e eles são servidores públicos. Estavam nos colocando para fora por quê? O velho, que nada havia percebido, cansou de ficar de pé ao sol e voltou para se sentar exatamente de onde nos retiraram. Ninguém se incomodou. Continuei próximo ao portão consciente de que o problema era eu. Provavelmente porque fiquei olhando dezenas de carros e motos da polícia ali estacionados e policiais que deviam esta nas ruas levando segurança à população, também ali parados de bobeira. Ou porque nosso carro era popular e já usado, batido, estávamos de moletom, com barba por fazer e nada elegantes. Na verdade, não exibimos status de importância.

O fato deve ter apressado o policial que não demorou a nos dar o Boletim de Ocorrência. Saímos dali para procurar funileiros, martelinhos de ouro...

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Luiz Mendes

07/07/2014.         

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