Por Redação
em 21 de setembro de 2005
Nunca houve tanto árabe na televisão. Toda noite, uma nova invasão dos mouros desembarca via satélite nas casas brasileiras. E de uma maneira para lá de esquizofrênica. No Jornal Nacional, por exemplo, o muçulmano é sempre pintado como o integrante de uma turba monocórdia de homens feios, sujos e malvados. Minutos depois, em O Clone, o mesmo canal o transforma rapidamente no membro de um grupo seleto de seres belos, ricos e humanos.
Infelizmente não dá para dizer que a diversidade dos árabes da Rede Globo se deva a algum desejo ardente de realismo. O árabe que vem da cabeça da Glória Peres e também aquele que vem do suposto mundo real são esculpidos dentro da fôrma estereotípica com que a comunicação de massas é obrigada a trabalhar. Ambos vivem num território de mitos eletrônicos, a mídia, onde as fronteiras entre o que a gente chama de ficção com o que a gente chama de realidade andam mais escu-lhambadas que as fronteiras da Palestina. Ambos são personagens.
É fácil aceitar que o árabe ficcional de O Clone é o fruto híbrido da visão de um grupo de pessoas – a autora da novela, o diretor, os atores. Bem mais difícil é perceber que o árabe supostamente real do Jornal Nacional também é fruto da visão de alguns – aqueles que tem o poder de editar imagens e sons vindos do Oriente Médio. Para a maioria do público é vital a ilusão de que a mídia é um espelho isento e objetivo da vida. Para que se garanta o transe do espetáculo, tanto o personagem ‘de ficção’ quanto o personagem ‘de verdade’ precisam ser reais quando são exibidos. É uma espécie de ‘me engana que eu gosto’ que tem que ‘ser eterna enquanto dura’. Assim, ninguém vai querer ficar muito preocupado com as diferenças absurdas que existem entre o árabe da Giovanna Antonelli e o da Fátima Bernardes.
Barbudos para viagem
Mesmo antes da era eletrônica, sempre foi ambígua a representação que o Ocidente faz desse personagem. Ele já foi chamado de ‘árabe’, de ‘levantino’, de ‘muçulmano’, de ‘oriental’, de ‘infiel’, de quase tantos nomes quanto o demônio. É uma imagem que varia com os períodos históricos de guerra e paz. Durante toda a primeira metade do século XX, quando os racistas europeus e norte-americanos apontavam os focinhos para os semitas de seus próprios continentes, os outros semitas, aqueles que vivem há milênios no Oriente Médio, tinham uma imagem bem diferente. Eram uma representação sempre idea-
lizada, um espectro de personagens inofensivos cujas características oscilavam do charme exótico de um Sheik de Agadir interpretado por Rodolfo Valentino à beleza e magia inocentes de uma Jeannie, aquela que era um gênio. O ‘árabe’ daquela época era apenas uma figura mitológica, irreal.
A grande reviravolta nessa percepção começa a partir das décadas de 50 e 60. Coincide com a resistência à criação do Estado de Israel. É uma transformação gradual que se radicaliza com o passar dos anos. Ultimamente, filmes e noticiários da mídia de massas, que têm seu epicentro nos EUA e que contam com uma presença maciça de aliados de Israel em seus postos-chave, passam a vender a imagem de um ‘árabe’ excessivamente real – aliás, perigosamente real. Todo espectador sabe do que estou falando. É a imagem do barbudo de Allah, um monstro desumano que com a mão esquerda enforca uma de suas esposas e com a mão direita amarra na barriga peluda o cinto de explosivos com que vai mandar pelos ares um jardim de infância cheio de crianças loiras.
Logo depois dos atentados de 11 de setembro, o escritor Gore Vidal declarou que ‘há várias décadas vem ocorrendo na mídia dos EUA um processo implacável de satanização do mundo muçulmano’. E acrescenta, com ironia: ‘Como sou um americano patriota, não posso dizer por que isso está acontecendo’.
A pergunta que Vidal deixa no ar tem resposta óbvia. A partir da segunda metade do século XX, o principal campo de batalha de qualquer guerra não é mais um chão geográfico, mas, sobretudo, o espaço imaterial da mídia. É aqui que se conquista o mais precioso dos territórios, a consciência coletiva. Sem o apoio maciço da opinião pública norte-americana, o Estado de Israel também se tornaria imaterial. A degradação da imagem árabe foi e ainda é um lance estratégico no teatro de operações desta guerra virtual que quer tingir de sangue o inimigo. É um ataque sofisticado que usa todo o arsenal de armas midiáticas. Da imagem subliminar à opinião intelectual. Do blockbuster hollywoodiano ao editorial do New York Times. Difama o inimigo, massificando a imagem do terrorista, e patrulha histericamente as reações críticas aos excessos da opressão israelense, jogando-as na vala comum e injusta do anti-semitismo.
O diabo mora ao lado
O ‘pequeno satã’ islâmico descrito diariamente pelos meios de comunicação existe de fato. Em número crescente, não há como negar. Também não há como negar que ele ainda representa uma exceção. E que amplificar sua voz, confundi-la com a de toda uma comunidade pacífica, só o fortalece. A lógica da difamação midiática é, no fundo, igual à de qualquer calúnia pessoal rasteira. Transforma a exceção em regra e a parte no todo. Infelizmente, tem dado resultados. Baseado numa profunda ignorância bombardeada de informação, o espectador norte-americano médio faz uma associação automática entre a palavra ‘muçulmano’ e a palavra ‘terrorista’. Assim, garante-se a manutenção de uma política insana no Oriente Médio. E, em reação a décadas dessa política predadora, também se formou uma rede islâmica de demonização de tudo o que é norte-americano e sobretudo judaico – ancorada nos veículos tradicionais, como jornal e TV, mas também numa estrutura de mesquitas e escolas religiosas radicais (religião também é mídia de massa).
Se me atenho à rede ocidental é porque é nela que estamos inseridos. A comunicação de massas é hoje o principal suporte do imaginário do planeta. A migração da guerra do Oriente Médio para o front midiático já deu provas de sua capacidade de incendiar o mundo inteiro. A hegemonia dos EUA na comunicação é tão perigosa quanto a militar. Imaginemos, assim – doidamente, não custa -, que por algum interesse estratégico, o império dos EUA resolvesse utilizar seu poderio midiático para transformar a imagem do Brasil. Em que nos transformariam? Num covil incorrigível de criminosos em guerra civil onde 40 mil pessoas são assassinadas por ano, ou seja, duzentas vezes mais gente que na Palestina? Num país às vésperas de se tornar teocrata, já que a instituição e representação política que mais cresce é a de evangélicos?
Não sei qual seria o delírio, mas não tenho dúvidas de que eles encontrariam uma infinidade de imagens para confirmar qualquer uma dessas teses. E não tenho dúvida de que, na lógica midiática, a quantidade dessas imagens, sequiosas de vi-sibilidade, se multiplicaria. Na grande mídia, a realidade é sempre mítica. Qualquer reality é show.
LEIA TAMBÉM
MAIS LIDAS
-
Trip
Bruce Springsteen “mata o pai” e vai ao cinema
-
Trip
O que a cannabis pode fazer pelo Alzheimer?
-
Trip
5 artistas que o brasileiro ama odiar
-
Trip
Entrevista com Rodrigo Pimentel nas Páginas Negras
-
Trip
A ressurreição de Grilo
-
Trip
Um dedo de discórdia
-
Trip
A primeira entrevista do traficante Marcinho VP em Bangu