por Luiz Alberto Mendes

Natal/2013

 

Aprendi a não gostar de um monte de coisas na prisão e a me livrar delas. Algumas por pura falta ou necessidade. Não havia meios de obter e para não sentir vontades insuportáveis, melhor foi cortar o mal pela raiz. Em outras situações exigia-me não gostar para me preservar. Para não passar pelo risco de acabar comigo sem querer, como no caso das drogas (químicas) por exemplo. A angústia, a melancolia e principalmente a neurose pesada, oprimiam a cada fração de segundo do cotidiano. Retirei de minha vida quase tudo que não fosse essencial para a sobrevivência. Em meus cometimentos, só obtive algum sucesso ao final do cumprimento da pena; constantemente era derrotado e sofri muito por cada um de meus fracassos. Eles atingiam em cheio minha auto-estima. Como no caso do medo, para exemplificar. Às vezes eu o ultrapassava; em outras o medo cortava em tiras, sacrificava, acabava com minha existência. Acredito que só os covardes sobrevivem e que foi por conta disso que sobrevivi. Caso tivesse peitado e batido de frente todas as vezes em que fui desafiado, com certeza não teria sobrevivido. Pelo menos não lúcido. Quem me conhece diz que eu fui inteligente. Claro, estudei a correlação de forças e inventei mil estratégias para escapar quando me eram desfavoráveis. Mas sim, tive que apelar para a covardia algumas vezes. Aparava o cabelo rente ao couro cabeludo para não ter caspa ou qualquer tipo de parazita na cabeça (ainda faço isso). Cortava a barba duas vezes na semana por uma questão de disciplina (já não faço mais isso). Corria e fazia ginática no pátio todos os dias para estar sempre saudável (hoje frequento academia). Não podia depender de remédio, pois nem sempre havia, e não queria ser tratado como lixo pelo médico que aparecia de vez em quando. Falava o mínimo possível porque peixe morre pela boca e se a boca fala do que o coração esta cheio, eu não podia demonstrar nada. Melhor calar mesmo. Não frequentava a cela de ninguém, como aqui fora raramente vou visitar alguém em casa, a não ser em caso de doença. Prefiro reuniões em parques, espaços abertos ou estabelecimentos comerciais. Evitava aparecer sempre que possível; quem não é visto não é lembrado. Ser lembrado significava estar em pauta. Podia até ser para o bem, mas como na prisão nada se espera de bom; melhor ser esquecido. Ser discreto, falar pouco e não aparecer muito é regra básica do sobrevivente na prisão.

E foi assim que fui deixando de gostar das datas comemorativas. No aniversário do homem aprisionado, era permitido que este recebesse visitas e um bolo de até dois quilos. Minha mãe, durante 20 anos, religiosamente, me visitava nesse dia e levava um pudim de leite condensado ou um bolo. Então era uma data ansiosamente esperada. Mas depois ela teve um derrame e não pode mais me visitar. Essa passou a ser uma data a ser ignorada forçosamente para a saudade não doer demais. Já Natal era época de tumulto na prisão, tentativas de fuga, assassinatos e loucuras mil. A segurança e a disciplina eram reforçadas e ficava mais difícil ainda cumprir a pena. Eu não permitia que meus familiares viessem fazer visita no dia da comemoração do Natal da prisão. Era muito sacrificado. Nessa data aqueles familiares que esqueceram o parente ali preso o ano todo, queriam visitá-lo: “espírito” de Natal. Uma multidão querendo entrar, as filas quilométricas e tumultuadas, os guardas nervosos e impacientes nas revistas; o povo sofrendo para conseguir visitar seus entes queridos… Eu detestava Natal, e aprendi a lutar contra toda a mídia que nos vende essa data por preços tão exorbitantes. Então, hoje, depois de mais de 30 anos vivendo sob essa disciplina e quase 10 anos aqui fora, continuo a não gostar de Natal e geralmente passo em casa e sozinho.

Esse será o primeiro Natal que passo em família. Embora não seja minha família consanguínea (dessa gente não quero nem saber), é uma família amiga e conheço a todos; fui convidado e vou experimentar. Estou me destravando hoje, sem muita convicção ou entusiasmo, é bem verdade, mas vamos lá, coragem não me falta. Vamos ver se gosto, depois falo, se surgir algum fato digno de ser narrado.

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Luiz Mendes

24/12/2013. 

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