por Luiz Alberto Mendes

Revolta

Naquele dia de Natal descemos para o pátio de recreação aborrecidos. Quase todos nós tínhamos família e sentíamos falta da festa, da alegria e do prazer de estar com todos os parentes reunidos em casa. Pais, companheiras, filhos, amigos, cada um daqueles que amávamos fazia falta enorme. Formaram times na quadra do pátio e o futebol comeu solto. Um jogo mais viril para dizer o mínimo daquela briga em que todos se maltratavam mútua e organizadamente. Eles diziam que futebol era para homens e quase todos saiam lascados da quadra improvisada. Vários braços, pernas e pescoços foram quebrados por ali.

Queria só pensar, então me coloquei a andar na parte do pátio que restava, para lá e para cá, sem parar para não dar chances de ser abordado. Parecia coisa de louco, mas eu pensava melhor andando. Nem lembro sobre o que refletia, quando de repente o tempo mudou. O céu ficou nublado e rapidamente escureceu prenunciando chuva que vinha chegando. Havia uma regra imposta pelos guardas, nossos algozes e inimigos viscerais, naquela época. Caso chovesse, eles apitavam e nós seríamos obrigados a subir pelas escadas do pavilhão e ficar nas portas das celas, esperando sermos trancados novamente. Fazia meia hora que estávamos fora da tranca dura das celas (eram individuais a essa época), dia de Natal; ninguém queria ficar trancado e isolado do resto do mundo.

E começou efetivamente a chover. Os guardas apitaram para que subíssemos para os andares. Alguns que já estavam achando chato ficar ali se molhando na chuva e outros que gostam de fazer o jogo dos guardas foram subindo. Na quadra houve uma reunião. Ninguém sobe, foi a decisão. Como estava andando na chuva e adorando aquela novidade porque até então, quando chovia tinha que voltar para a cela, continuei andando. Queria dizer aos companheiros que jogavam bola, que estava com eles. Eles me sorriam em troca e a bola voltou a comer solto. Os guardas apitaram novamente e, pelo portão, começaram a nos ameaçar. Outros presos subiram, amedrontados. Continuei andando para lá e para cá pelo puro prazer de ter a chuva na cara, depois de tantos anos. Sequer pensava em consequências.

Alguns guardas do Choque da Penitenciária (eram os mais brutais que faziam parte do "Choque") adentraram ao pátio com cano de ferro nas mãos, tentando nos intimidar. E, de fato, um deles foi para cima do Durval para bater nele com o cano. Durval era o menor de nós, mas dava aulas de capoeira no pátio; jogou o guarda no chão e lhe tomou o cano de ferro. Os outros guardas fizeram menção de ajudar o colega e os futebolistas pararam o jogo e foram para cima. Os guardas saíram correndo para o portão. Mas seus colegas, covardes, trancaram do lado de dentro e correram com medo de rebelião, largando os guardas trancados no pátio conosco.

É óbvio que ai a covardia foi dos companheiros que ficaram correndo atrás deles no pátio e batendo bastante. Fiquei olhando agora com o coração aos pulos, consciente das consequências que necessariamente viriam. Mas não lamentava não haver subido quando pude. Muitos, como eu, haviam ficado e não era rebelião, apenas queríamos tomar chuva no Natal. Para não ficar pior ainda e não corrermos o risco de que alguém excedesse e matasse um guarda, eu e outros fomos, naturalmente, formando uma espécie de cordão, isolando os guardas no portão de acesso ao pátio. E foi minha sorte. Quando o chefe deles criou coragem e veio abrir o portão, fui obrigado a apoiar um guarda que desmaiou do meu lado. Levei-o para o outro lado do portão. Os guardas queriam que eu ficasse, mas não podia; voltei para o pátio.

Não demorou muito para que o choque da polícia militar chegasse com seus escudos, balas de borracha e os longos cassetetes. Pareciam até humanos, nos pediram que subíssemos para a cela numa boa. Olhamos uns para os outros, desconfiados e de repente, sem pensar muito, os futebolistas foram entrando. Contra a força não há possibilidade de resistência. Fui entrando junto, todo ensopado, espirrando água para todos os lados. Quando atravessei o portão já fui alcançado por um cano de ferro batendo violentamente em minhas costas. Era uma armadilha. A PM nos recolhia para que os guardas se vingassem de nós. Fui jogado para a frente com uma dor tão grande que parecia o cano havia entrado em minha costas. Eu podia sentir o pulmão doendo quando vieram outras cacetadas. Colocaram-me em uma cela no porão do pavilhão e me trancaram com mais 5 companheiros.

Passamos a tarde do Natal ali, sangrando, com dois parceiros com braços quebrados, cabeças rachadas e lamentando. Quando da troca de plantão os guardas nos tiraram das celas para espancar novamente. A primeira cacetada que tomei, rachou minha cabeça e eu cai com sangue escorrendo pela cara. Foi então que o chefe dos guardas me reconheceu e tirou para o lado. Deu-me um tufo de papel higiênico que pressionei no corte da cabeça, e foi me levando. Estava com uma dor enorme na cabeça e o sangue não parava de escorrer pela cara e pela nuca abaixo. Chegamos à enfermaria, o enfermeiro (preso) começou a pressionar a minha cabeça com uma toalha e deu-me uma injeção. A cabeça latejava, mas a dor diminuiu. Tomei um monte de pontos a seco, sem anestesia. A cada espetada da agulha e depois a passagem da linha, vibravam choques curtos de dor. Mas, ao fim e ao cabo, o companheiro estava satisfeito porque conseguira estancar o sangue e o corte estava bem costurado.

O chefe falava que o guarda que eu "salvara" fora levado para o hospital, mas passava bem. Ele estava pensando que eu defendera e salvara o guarda da mão dos companheiros, só porque me viu trazê-lo, carregado, para dentro do pavilhão. Achava que eu me importava com a vida dos funcionários e me dava satisfações. Eles haviam visto, da galeria superior, quem batera nos guardas. Eu era conhecido e eles me viram apenas andando no pátio, olhando. Dali fui conduzido para minha cela, o pavilhão estava em silêncio. Todos que ficaram no pátio (e vários nada haviam feito) apanharam bastante e foram levados para a cela forte.

O Natal havia passado, minha cabeça doía, mas desmaiei na cama assim que adentrei na cela. Acordei de madrugada, o travesseiro cheio de sangue e sangue escorrendo pelas costas. Bati na porta, chamei o guarda e ele me conduziu à enfermaria novamente. Fiquei uma semana com uma tremenda dor de cabeça, até que começou a desinchar e cicatrizar a ferida. No final do ano, já estava pronto para outra.

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Luiz Mendes

10/04/2014.

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