Uma turma de skatistas da Califórnia aproveita para dropar piscinas esvaziadas pela crise



Em tempos de colapso imobiliário, desemprego e despejo, o número de casas à venda ou abandonadas multiplicou-se rapidamente no Sul da Califórnia. Enquanto a maioria lamenta, uma turma de skatistas aproveita a oportunidade única para dropar nas piscinas esvaziadas pela crise

 

Para viver o sonho americano no meio de um pesadelo econômico, a última coisa que Steve Alba precisa é de um emprego. É que, sem tempo livre, a coisa não anda para o sujeito. Para se manter assim, fora da força de trabalho, ele dá um duro danado. Recorre à ajuda do Google Earth, de fotos de satélites militares, um par de mangueiras calibrosas, produtos de limpeza pesada, contatos no mercado imobiliário, um compressor de ar, um gerador a diesel, a cara de pau, a vista grossa da polícia, uns amigos de bobeira, panos e toalhas velhas, baldes reforçados e um vassourão. E, claro, de um skate casca grossa. “Não preciso de nenhum luxo para ser feliz”, diz o homem de 45 anos e centenas de casas com piscina para desfrutar.

Nenhuma delas lhe pertence no papel, verdade seja dita. Mas, assim como boas amantes, as piscinas de Steve são suas de coração: escolhidas, aduladas e, carinhosamente, violadas. Tão longo seu cartel, que até hoje, contando os pioneiros de Dogtown, Steve Alba é o maior nome do pool skate, ou o ofício de andar de skate em piscinas vazias. Nos lendários dias de Jay Adams, Tony Alva e Stacey Peralta em Dogtown, as primeiras piscinas defloradas foram resultado da seca nos arredores de Los Angeles. As manobras inaugurais e a revolução de estilo foram largamente documentadas em revistas e filmes. Se nos anos 70 a falta d’água colocou piscinas no mercado, nos anos seguintes a seca financeira as esvaziou para o skate de Salba.

PRA CASAR
Nos anos 80 ele fez da delinquência dos meninos de Dogtown uma especialidade. Não gasta seu tempo e miolos com rampas, megarrampas ou bem desenhados bowls. Piscina, e só. Para Alba, e para a turma que está conosco para essa sessão, a beleza e o sentido mais profundo do skate estão na dificuldade e no prazer de descobrir uma piscina nova, e de gastar horas, tardes ou dias decifrando cada canto da construção, tentando acabar com a lógica e com a gravidade na hora de manobrar nas paredes, evitando um ralo, tocando a escadinha com o shape, passando as rodas nas bordas. Uma piscina de primeira mesmo, das pra casar, é insaciável.

Se a metáfora feminina parece gratuita ao leitor, então conheça Ozzy – 45 anos também. Ele é chapa de Salba (como Steve é mais conhecido) há muitos anos. Ainda suado de uma pool session pela manhã, ele fala sobre a caça às piscinas como uma espécie de tara lírica. Descreve suas formas com detalhes, se gaba da agenda de 200 endereços, de suas 50 favoritas e das 12 que eles não passam sem. E, como todo tarado de boa índole, Ozzy tem sua ética bem colocada. “Antes de tudo, você tem que merecer a piscina. Temos regras, regras claras”, sistematiza o hoje enfermeiro, ex-mariner e praticamente um cientista na hora de achar piscinas abandonadas e incorporá-las ao seu portfolio.

Desde que os EUA entraram no Serasa, a coisa ficou farta para os pool riders. Quanto menos grana circulando, a lógica manda, menos piscina funcionando. Ou melhor, mais piscina funcionando para os padrões de Salba, Ozzy, Bruno Passos e Nilton Neves. A turma que acompanhei em plena segunda-feira em Upland, Califórnia. É um típico subúrbio do sul da Califórnia, povoado por palmeiras, calçadas vazias e famílias de classe média. Um cenário clássico na atual hecatombe financeira/residencial da América. Por todo lado salpicam placas de despejos, retomada de propriedade ou simplesmente uma crônica oferta de casas vazias nos homogêneos quarteirões. Dirigindo seu sedã, depois de pegar o filho na aula de bateria, Steve dá seu parecer sobre o que a crise mundial representa em sua vida.

“Continuo fazendo o que sempre fiz, porque sempre tem piscina vazia em algum lugar. Mas hoje temos muitas opções. Se nos anos 90 tinha 20 piscinas por aqui, hoje tem 200. Quando a merda bate no ventilador, as pessoas abandonam as casas e sobram piscinas, simples assim”, ele elabora o óbvio para, em seguida, deixar claro que tempestades econômicas não são exatamente boas-novas para seu lifestyle: “Afeta todo mundo, e a mim também. Já tive meu salário cortado do patrocinador, e talvez perca o patrocínio, simplesmente”, abre o jogo na frente do filho Riley, 11 anos, levando o moleque para a segunda sessão do dia. Ela será em uma casa ocupada por uma família mexicana sem grana para manter o luxo de uma piscina limpa. Salba nem telefona, só aparece com mais cinco marmanjos e toca a campainha. O negócio é simples. Ele e os camaradas secam e limpam a piscina em troca de algumas horas de skate. Claro que a família topa. E parte dela senta no quintal para ver o raro show.

Do porta-malas saem baldes, mangueiras, panos e uma vassoura. De joelheira, cotoveleira e capacete, Salba é o primeiro a pegar no batente. A lenda viva do skate underground tem regras claras, o tal merecimento: precisa pegar no pesado para explorar uma piscina. Tira a água verde, fedida, com baldes. Bota o filho pra suar também. Varre todo o piso, enxuga-o com toalhas e, para deixar a coisa tinindo, abana com a camiseta a umidade que resta perto do ralo, a parte funda. Ainda vai, durante a sessão, desparafusar a escada de metal para abrir mais um canto para manobras. Também vai passar um verniz nas bordas para aderência e, no fim, vai deixar tudo como antes. Exceto por umas novas marcas de rodinhas no cimento velho.

A descrição simples esconde a importância ritualística da faxina toda. Ozzy, Bruno e Nilton são os primeiros a reconhecer que o reino das piscinas vazias é a Salbaland. O código de Steve Alba determina quem pode andar em suas sessões, quem merece descer uma piscina. Ozzy, o ministro das prospecções, é quem melhor explica a liturgia.

“Primeiro a gente tem que achar as piscinas. Pode ser alugando um helicóptero para ver de cima. Um fotografa e o outro anota o endereço. Ou olhamos no Google Earth, mas precisamos checar em outras fontes de fotos de satélite. Depois é dirigir mesmo, para procurar placas de vende-se e de retomada de posse”, vai se abrindo. Entrar nas casas é outra questão. Vai, Ozzy, explica. “Não pode levantar suspeita. Então o ideal é agir como se a gente fosse contratado para drenar as piscinas. Vai de bota, compressor na mão, dá bom dia pro vizinho...” Aí vem a faxina.

Ozzy, mais do que Salba, vê as diferenças em seu métier depois da crise imobiliária nos EUA. “O skate não mudou nada. Mas o cenário está uma loucura. Já entramos em casa que ainda tinha tudo dentro: roupa, TV, comida na mesa! O povo simplesmente abandonou tudo.” E vem cá, Ozzy, polícia dá problema? “Olha, a gente é muito profissional, então é raro aparecer polícia. Mas eles podem nos acusar de invasão de propriedade com razão. Sempre dá pra conversar. Jogo na mesa que sou enfermeiro, que sou veterano militar e que, no fim das contas, prestamos um serviço à comunidade.” Que serviço, exatamente? “Ora, quem você acha que mantém os mosquitos fora das piscinas com água parada? A polícia sabe disso...”

Salba tem uma visão ainda mais tranquila da polícia. “Pra falar a verdade, eu acho que eles sabem da gente. Mas não ligam, deixam passar. Numa escala criminal, o que fazemos está no nível mais leve de todos. E tem a crise, né? Eles precisam gastar com o que interessa mesmo. E muitos policiais hoje são skatistas, têm amigos no skate. Ninguém mais nos vê como delinquentes, entende?” Daí outra regra de seu código: só esvaziar piscina com água suja, para não desperdiçar água boa nem dar motivo para uma queixa policial.

METAFÍSICA DO POOL SKATE
Salba, Bruno, Nilton, Riley e uma molecada que foi aparecendo aos poucos na piscina recém-faxinada se alternam em voltas pelo cimento azul-clarinho. A cada round, um canto novo é avaliado, testado e, eventualmente, vencido. Uma roda que passa no ladrão de água na parede rende uivos e aplausos. Um percurso entre um ralo e uma escada, seguido de uma descida perfeita de volta à parte rasa, puxa gritos e mãos pra cima. Nada de espetacular aos olhos do leigo, talvez mais atraído por mirabolâncias em tempos de megarrampas e acrobacias em ginásios à medida que o skate se torna, de fato, um esporte de massa. Mas é aí que entra a poesia, a metafísica do pool skate. Uma piscina não é feita para as rodinhas nem para homens-feitos deslizarem em suas paredes.

Mas, ao ver Salba, os brasileiros radicados nas piscinas vintage americanas e os moleques em crise do sul da Califórnia gastando suas tardes nadando no seco, a opulência do skate mainstream ganha um ar meio ridículo. E a ideia da crise, de aperto, ganha beleza. Todo o sufoco, a faxina, o anonimato validam a obsessão com merecimento que esses homens têm na vida. E Ozzy, ao tentar explicar por que o pool skate é uma arte em si, solta uma frase definitiva, que, misteriosamente, também define a economia e os EUA. Debruçado na mesa de um restaurante barato, menu em promoção, Ozzy sintetiza: “Uma piscina só encontra a verdadeira vocação em seu vazio”.

 

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