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Na escuta

Ouvimos mediadores de conflito, cujo trabalho é encontrar o ponto de conciliação

Na escuta

William Ury / Créditos: Kiko Ferrite/Acervo Trip


Por Renan Dissenha Fagundes

em 24 de novembro de 2014

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No filme cult Donnie Darko, o guru charlatão Jim Cunningham divide o mundo de forma simplória entre ‘amor’ e ‘medo’. O medo seria a causa de todos os nossos problemas, e o amor, a forma de enfrentá-lo. O personagem vem à mente quando o americano William Ury afirma que, sim, o medo é a principal causa dos conflitos atuais do mundo. Mas, claro, enquanto Cunningham é uma piada, Ury, antropólogo formado pela Universidade Yale e pós-graduado em Harvard, sabe do que está falando. “Eu acho que medo é o principal inimigo que temos. Nós temos medo da escassez: não vai haver suficiente para mim, não vai haver suficiente para nós, não vai haver suficiente para o meu grupo. E isso está na raiz de muitos conflitos”, diz. 

Ury é referência no campo dos meios alternativos de resolução de litígios (isto é, a resolução sem o envolvimento da justiça, extrajudicialmente) e um requisitado negociador e mediador de conflitos. Nas últimas três décadas, ele participou de negociações globais, como as disputas entre a Rússia e a Chechênia, o apartheid da África do Sul e a guerra civil da ex-Iugoslávia, ao mesmo tempo em que trabalhou, no mundo dos negócios, com conflitos corporativos e familiares. “Eu gosto de trabalhar em uma variedade de contextos porque minha paixão é a paz, e a questão básica por trás disso tem a ver com a pergunta: como podemos viver juntos mesmo com profundas diferenças?” 

Mas, nessa paixão pela paz, não pense que William Ury quer livrar o mundo de conflitos: para ele, essas situações são necessárias. “Eu acredito que precisamos de mais conflitos na sociedade, não menos”, afirma. “É apenas através de conflitosque é possível trazer à tona assuntos de injustiça social.” A questão, então — e este, segundo Ury, é “o grande desafio que a sociedade brasileira e a humanidade enfrentam” —, é como lidamos com esses conflitos: de uma forma destrutiva ou construtiva.

Marcelo Freixo / Créditos: Jorge Bispo/Acervo Trip

OLHARES EM CONFLITO

Deputado estadual eleito pelo Rio de Janeiro, Marcelo Freixo tem visão parecida. “Não tem que evitar o conflito, o conflito não é ruim”, afirma. “O problema é como você trata o conflito, qual é a tua capacidade de dialogar com ele. É o conflito que faz a gente andar.” Foi em rebeliões nos presídios fluminenses que Freixo mais exerceu a função de mediador, incluindo a histórica de Bangu I, em 2002, quando passou 18 horas negociando com presos liderados por Fernandinho Beira-Mar e Marcinho VP. A participação nesse caso e em outros serviu de inspiração para o personagem Diogo Fraga, do filme Tropa de elite 2. “Mediei dezenas de rebeliões, sempre com reféns, armas de fogo”, conta o político, que foi presidente do Conselho da Comunidade, órgão que, entre outras funções, fiscaliza os diretos humanos no sistema penitenciário.

“Os presos pediam por mim como mediador porque eu era alguém da confiança deles”, conta o deputado. A confiança vinha dos anos em que Freixo passou acompanhando a situação das carceragens do estado, e antes disso até. Freixo começou a trabalhar em presídios quando ainda era estudante de história na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, dando aula em um curso de educação popular organizado por uma socióloga agente penitenciária. “Depois que comecei a dar aula em presídio passei a conviver com esse universo institucional da violência”, conta. Para Freixo, a “luta política” é uma “luta pedagógica, da construção de um outro olhar”. “A mediação de conflitos acontece quando se é capaz de perceber outras visões de mundo diferentes das nossas”, afirma. “Mais do que uma técnica, é ter sensibilidade para entender quais são os olhares em conflito e conseguir assim criar um diálogo.”

José Junior / Créditos: Arquivo Pessoal

ESCUTAR É O PRINCIPAL

No Brasil, hoje, vivemos em meio a uma série de conflitos importantes e urgentes. A questão agrária, das terras e do trabalho no campo é um. A das cidades e da vida urbana — transporte, pobreza, polícia — é outro. Enquanto os problemas do campo aparecem menos, para Freixo, o conflito urbano deve estar bastante em foco nos próximos anos. 

“Junho do ano passado, 1 milhão de pessoas nas ruas, era uma crise da vida urbana, era uma crise do modelo de cidade, era uma crise de pertencimento”, diz. “Acho que esse é o grande conflito que a gente tem no Brasil hoje: há uma crise de pertencimento, há uma crise de identidade, há uma crise de representatividade.” E como estamos lidando com esses atritos nacionais? “Essa é uma mediação de conflitos em que o Estado e o poder público têm que entender o seu papel”, acredita Freixo. 

Para José Junior, do AfroReggae, “é difícil resolver qualquer coisa no mundo sem intervenção do poder público”. “Antigamente achava que a gente como ONG podia fazer muita diferença, a gente faz muita diferença, mas não resolve”, diz.

As mediações de conflitos que Junior faz e fez nas comunidades do Rio têm uma dimensão bem mais próxima, e perigosa também. “Quando se faz mediação, é preciso se desprender um pouco do medo de morrer, porque senão fica impossível a mediação”, diz. “As mediações que faço são, geralmente, em favelas em guerra — polícia, bandido, traficante, milícia, essas coisas —, eu tenho que me concentrar, e, nessa questão da concentração, aceito na minha cabeça a possibilidade de morrer.”

Mesmo tendo participado das negociações durante os atos de violência de 2010 no Rio de Janeiro, quando ataques organizados por traficantes obrigaram até o pedido de apoio do Exército e da Marinha pelo governador do estado, Sérgio Cabral, Junior não lista a ocasião entre as mediações mais difíceis que fez. “As pessoas confundem muito a coisa midiática”, afirma. Para ele, foi em outubro de 2004, em Vigário Geral e Parada de Lucas, aque mais o marcou: a ONG foi acusada de trabalhar junto com o Bope para acusar e matar traficantes. “O esclarecimento gerou um estresse muito grande”, conta. “Inclusive uma das pessoas que me ligou falando que ia me matar hoje trabalha aqui no AfroReggae.” Com receio de que outros integrantes do AfroReagge pudessem morrer, Junior foi junto na negociações. “Eu fui pra morrer junto com eles, mas eles fizeram um trabalho excepcional e resolveram praticamente tudo.”

“Acho que esse é o grande conflito que a gente tem no Brasil hoje: há pertencimento, há uma crise de identidade, há uma crise de representatividade” Marcelo Freixo

Mas como lidar, afinal, com os conflitos e com o medo da sociedade? Há uma forma para enfrentar essas situações, de acordo com William Ury, e ela é bem clara: saber escutar. “Escutar é a principal parte da comunicação humana”, ele afirma. “Nós achamos que é conversar, e com a internet, e os celulares, e as mensagens de texto, e as mídias sociais, há muitas conversas no mundo, mas a questão é: estamos escutando uns aos outros?” Mesmo as técnicas de negociação e mediação, segundo o americano, são muito mais sobre escutar do que sobre conversar. “Como mudar a ideia de alguém se não sabemos qual é a ideia dele agora?”, diz. Só que escutar não é assim tão fácil. “Escutar leva tempo”, diz. “Assumimos que pessoas escutam, mas na verdade escutar é uma habilidade que precisa ser ensinada e aprendida.” E uma pergunta do americano ecoa em nossos ouvidos: “Como seria afinal viver em uma sociedade que escuta?”.

Freixo no presídio Bangu 3 em 2002, quando era coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro
Freixo no presídio Bangu 3 em 2002, quando era coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro / Créditos: Christian Gaul/Acervo Trip

Vai lá Os três entrevistados desta reportagem já estiveram nas Páginas Negras da Trip.
José Junior http://goo.gl/z2yqGB
Marcelo Freixo http://goo.gl/JJ7cT
William Ury http://goo.gl/g76P9s

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