Mítia: TV, mostra a tua língua

Uma vez ouvi o Jô Soares dizendo no programa dele que ‘o videoclipe é a única linguagem da TV’. Acho que desde ‘o meio é a mensagem’, do MacLuhan, ou ‘quem não se comunica se trumbica’, do Chacrinha, não ouvia uma fórmula tão bombástica sobre os meios de comunicação. Como quase tudo que é dito na televisão, a declaração passou em branco. Na minha cabeça não passou. Eu fiquei muito intrigado. Se algumas frases são pérolas, essa do Jô era uma ostra que, disse minha intuição, poderia conter algo de precioso. O que significa dizer que o videoclipe é a única linguagem da TV? Realmente não entendo. Numa conversa imaginária que tive com o Jô, este íntimo de todos, ele me respondeu: ‘Que é isso, Carlos? Não é nada pra você ficar quebrando a cabeça. Só disse que o clipe, com aqueles cortes rápidos, aqueles efeitos, era a única forma própria de expressão da TV. O resto não é. O resto é mais ou menos como a vida’.

REALITY SHOW
Uma lógica que considera que na TV tudo que não é clipe também não é linguagem deve achar que aquilo que aparece no Jornal Nacional, no freak show do Ratinho ou no próprio programa do Gordo é a realidade pura. Não mediada. Não traduzida. Não transcriada. ‘A vida como ela é.’ Na verdade, não é só o Jô que acha isso. A torcida do Flamengo inteira também acha. Apesar de haver um inegável aumento na consciência crítica dos espectadores, ainda são poucos os que enxergam a telinha como o espaço de uma linguagem culturalmente arquitetada e deliberadamente construída. No assistir relaxado de cada dia, a TV ainda é vista pela maioria do público como uma espécie de espelho eletrônico da vida. Que apenas reflete. Como se fosse uma tecnologia de reprodução isenta de uma ideologia de produção.
Sem querer ser chato – e já sendo – acho que não há nada mais equivocado. Poderia simplesmente acreditar que o Jô se expressou mal. Que foi justamente um problema de linguagem ele dizer que o clipe é a única forma de linguagem na TV. Só que o Jô é um mestre da comunicação. E é justamente pelo fato de ter sido dita por um mestre da comunicação, alguém que vive tanto da linguagem quanto da TV, que a frase me assusta tanto.
Na seqüência da conversa imaginária, perguntei: ‘Jô, então, o que é linguagem?’. Infelizmente não deu para ouvir a resposta porque o Bira soltou uma daquelas gargalhadas em cima da minha petulância. Por sorte, nessa mesma época, eu assisti a um outro talk show, uma palestra do Richard Rorty, considerado por muitos o maior filósofo americano vivo. E ele também mandou uma frase bombástica: ‘a linguagem não é algo que reflete as coisas do mundo, mas sim a rede que nos liga ao mundo’.

MINHA TELA É MINHA PÁTRIA
Se a linguagem é rede, rede é linguagem. A TV, em qualquer momento, é pura linguagem. Uma linguagem como qualquer outra. Linguagem viva. Com regras, com gramática, com invenção, com perversão. O próprio Programa do Jô é linguagem de cabo a rabo. Não estou me referindo apenas às suas grandes qualidades de verbalização. Estou me referindo também à posição das câmeras, ao tempo reservado a cada entrevista, aos bordões, aos gestos repetidos, ao fato de ele chamar qualquer pessoa – até o Papa – de você, à caneca que contém a bebida secreta, ao fato de a cadeira do entrevistador ser bem mais alta que a do entrevistado, ao número de maestro que ele faz para deixar bem claro, a cada instante, quem toca o show.
Tudo aquilo que os raios catódicos fazem explodir no vidro, que une e separa o espectador do mundo mítico da mídia, é linguagem. Tudo quer comunicar alguma coisa de um predeterminado jeito. Não há definição mais óbvia. Mídia é a linguagem. Mídia é a verdadeira língua franca do mundo contemporâneo. É hoje de longe a língua mais usada do planeta. Muito mais que inglês, muito mais que chinês. A cultura que não decifrar sua gramática caminha, necessariamente, para o trumbico. E mesmo que alguns daqueles que a escrevem ainda não a reconheçam, mídia é uma linguagem que em breve será ensinada na escola primária.