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Mítia: O jornaleiro da maternidade

Por Redação

em 21 de setembro de 2005

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Dia 2 de dezembro de 2000. Quatro e meia da tarde. Sala de parto. O Teo está saindo da barriga da Flavia. O meu filho. Ele está nascendo. Ele nasce. Eu vejo e acredito. A primeira imagem me lava a alma. E é de uma definição indizível, como se todo o mundo fosse em VHS, e só a carinha dele, olhando pra tudo, em Imax 3D.

Corta. Dois dias depois. Eu vou ao jornaleiro da maternidade. E a primeira imagem é a seguinte. Duas adolescentes. Uma delas aponta para a revista Tititi e alerta, assustada: ‘Olha!’. Fico curioso, mas o motivo de tanta consternação é uma das chamadas de capa, que diz ‘Ana Maria Braga pode voltar para a Record’. As meninas trocam um olhar grave. As outras manchetes da banca, a selva de frases, fica toda gritando. ‘Um Natal emocionante para Xuxa’; ‘ACM diz que FHC tolera corrupção’; ‘Camila vai usar peruca’; ‘Gisele Bündchen veste sutiã de 30 milhões de dólares’; ‘Exército Israelense mata mais cinco palestinos’; ’10 celebridades dão a receita para um corpo perfeito.’

Corta. Volta para 2 de dezembro. O Teo nascendo. Nunca eu tinha desejado tão forte quanto eu desejei naquele dia. Era – ainda é – uma vontade enorme, que daria pra resumir numa frase só. Que a vida do Teo seja gostosa. Só isso. Tudo o que eu desejei naquela hora – e ainda desejo – é a coisa ao mesmo tempo mais profunda e mais rasa, a coisa mais óbvia e difícil de ser dita. ‘Meu filho, o sentido da vida é ela ser gostosa. Só isso.’

VIDA REVISTA
Não há dois ambientes no mundo mais antagônicos que estas duas salas do hospital. A sala de parto e a da banca de revistas. Na minha cabeça, entraram profundamente em choque a essencialidade de uma e o excesso da outra. A concentração de uma e a dispersão da outra. O fundamento de uma e o superficialidade da outra. E eu não estou querendo aproveitar o momento mais importante da minha vida para descer um pau irracional na mídia. Pelo contrário, o acesso à informação é pra mim um dos ingredientes mais importantes do caldeirão da felicidade. E eu espero que o Teo tenha esse acesso garantido. Sinceramente, eu só estou fazendo esta rápida relação entre o nascimento do meu filho e a mídia, simplesmente porque esta minha coluna na TRIP é sobre mídia, e eu não consigo pensar em outra coisa que não seja o meu filho.

Eu não consegui ver televisão durante os dias de maternidade. Nem ler jornal. Tentei, de madrugada, mas, durante três dias, nada que estivesse embalado no tom da mídia fazia o menor sentido para mim. E muito menos falta. O que me caiu nas mãos naquela hora, numa dessas coincidências felizes, foi um livro do Epicuro, um filósofo de que sempre gostei muito e que naquele momento especial me caiu como leite materno.

A PICADA DE EPICURO
Resumindo e generalizando muito (já que nós mesmos estamos, aqui, na mídia) dá pra dizer que Epicuro é o filósofo do prazer. ‘O prazer é o começo e a finalidade de uma vida feliz’, ele diz. Ao contrário do que certa imagem pública faz parecer, Epicuro nunca disse que o prazer tem que ser buscado pela satisfação imediata dos instintos básicos. É por meio da própria filosofia que se chega à felicidade. ‘O homem que diz que não está pronto ou que é muito velho para a filosofia é como o homem que diz que é muito novo ou muito velho para a felicidade.’ É pela reflexão que o homem se livra da dor do mundo. E talvez a principal reflexão epicurista seja a quetrata das grandes fontes de ansiedade na vida.

Relia essas coisas no quarto da maternidade, ao lado do meu filho recém-nascido e da minha mulher. Não dava para ficar muito surpreso com a minha reação alérgica ao entrar numa sala onde as paredes cuspiam frases a respeito de sutiãs de 30 milhões de dólares, corpos perfeitos ou mesmo corrupção no Planalto. Ficou óbvio que a visão de mundo formada pela mídia é uma das maiores fontes de ansiedade do homem contemporâneo. Pra mim, deitado num destes momentos raros de plenitude que a vida propicia, ficou claro que a mídia age exatamente como um tóxico.

O excesso de mídia cria uma necessidade artificial. E preenche um vazio que ele mesmo cria. Como uma droga, a mídia atua na nossa percepção. Conforme o nome indica, mídia é algo que media, aquilo que se coloca entre nós e o mundo. O excesso midiático dos nossos dias é literalmente uma intoxicação. Contra isso, não proponho nenhum fundamentalismo Taleban. As drogas são necessárias. Elas podem anestesiar, curar e inclusive ampliar a visão do mundo. Mas devem ser consumidas com moderação. Senão, o fato de que a Ana Maria Braga vai voltar para a Record pode virar um ponto relevante, numa vida tão breve.

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