Logo Trip

Mítia – Luz, Câmera, Fé

Por Redação

em 21 de setembro de 2005

COMPARTILHE facebook share icon whatsapp share icon Twitter X share icon email share icon

Já escrevi diversas vezes sobre a relação entre mídia e religião. E juro que não pensava em rezar de novo a mesma ladainha. Pelo menos, não tão cedo. Acontece que quando chegou o e-mail da redação da TRIP dizendo que a maioria das matérias desta edição falava de fé, eu imediatamente caí num transezinho maroto e fui levado de volta ao passado.

Estou em Belém do Pará. É setembro de 1991. Vejo este mar pela primeira vez: um milhão e duzentos mil fiéis, a maior procissão católica da Terra, o Círio de Nazaré. Mar de gente. Um milhão e duzentos mil corpos espremidos nas ruas da cidade em louvor a Nossa Senhora de Nazaré, um dos heterônimos da padroeira do Brasil.

São dez ou onze da manhã. Olho para a multidão transeunte e me assalta a lembrança do dever. Estou aqui a serviço. E a serviço de um outro senhor. Estou aqui produzindo o meu primeiro documentário para TV. Como os devotos de Nossa Senhora de Nazaré, estou atrás de imagens.

A imagem da Santa, a padroeira preta que navega no andor que agora é trasladado de uma igreja para outra, é um ícone bonito de gesso escuro. Ela é o epicentro em trânsito deste maremoto humano. Ela está dentro de um território móvel do tamanho de um coreto de cidadezinha do interior que aqui é fisicamente demarcado por uma corda grossa de juta, dessas de atracar navio.

É este espaço interior à corda, perto da Santa, que eu quero penetrar. Bom, eu e a torcida do Paissandu. Eu e todos. Para os fiéis, a corda que eles tentam fervorosamente tocar é tão milagrosa quanto a imagem da santa. Eu, infiel, não quero tocar nada. Quero só a imagem da Imagem filmada de perto. Não é tão fácil. Entre mim e ela se estendem uns trezentos metros dessa concentração amazônica de gente em êxtase. E êxtase, em grego, quer dizer ‘estar fora de si’, o que significa que, contando o corpo e a pessoa que está fora dele, não são só um milhão e duzentas mil pessoas. São dois milhões e quatrocentas. Eu até tento ir em frente, até tento varar a arrebentação, mas logo me dou conta de que aquilo que tenho que atravessar é intransponível, como se a Santa fosse o centro de um redemoinho às avessas em que o olho expele em vez de sugar.

Mas então acontece o milagre. O Henrique Goldman, nosso diretor, ordena e o John Weitzman, cinegrafista, coloca a câmera nas costas. O milagre. Eles avançam mosaicamente. O mar abre. O mar abre fácil. Eu vou atrás. Nós temos salvo conduto. É a câmera. Quando ela passa, os fiéis suspendem o transe por um instante. Aquilo erguido nas costas do John é um outro ícone religioso, não só o mero captador eletrônico de imagens, mas em si uma imagem religiosa de aura e carisma suficientemente intensos para desviar a atenção dos fiéis da imagem que está no interior da corda.

NOSSA SENHORA CÂMERA DE TELEVISÃO

Nós seguimos o caminho no meio da massa aberta. Vou ficando meio tonto. Muita gente falando comigo. Eu preciso ir. Vou. Nós chegamos ao outro lado da corda. Aqui, perto da Santa. Aqui dentro, só alguns padres, só autoridade, só equipe de televisão e eu – ainda marinheiro de primeira viagem, fascinado pelos poderes que a câmera de TV estranhamente me outorga. Eu meio tonto. Muita gente. O Henrique vai entrevistando os que estão do outro lado da corda. A corda, alguns fiéis tocam na corda. Desmaios. Eu meio grogue. Os depoimentos são todos fervorosos. Berros. Os fiéis estão pagando suas promessas para nós, pedindo graças para a câmera. Não, não estou vendo coisas. Nossa Senhora Câmera de Televisão. As pessoas estão querendo entrar pra dentro do diafragma. A câmera e a corda. Eu estou bem tonto. A câmera é a corda; não, a câmera é um buraco na corda, é a porta de um território também demarcado por alguma corda milagrosa. A câmera é autoridade de fronteira de um território para poucos, um território que não se estende sobre asfalto nem terra, um território não físico. As pessoas estão gritando, por meio da câmera, para um outro mundo. Para um mundo que elas não entendem. Para o mistério. As pessoas estão clamando por um território tão virtual quanto o Paraíso. Ou o inferno. Vejo isso tudo como um filme. E neste filme, um homem grita para a câmera mais alto que todos. Eu aqui acordo do transe matutino. Com as mãos no teclado do computador. E os olhos na tela.

CARLOS NADER, 35, HOMEM DE MÍDIA. SEU E-MAIL É CARLOS_NADER@HOTMAIL.COM “

PALAVRAS-CHAVE
COMPARTILHE facebook share icon whatsapp share icon Twitter X share icon email share icon

LEIA TAMBÉM