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Mítia: Funilaria Brasil

Por Redação

em 21 de setembro de 2005

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Eu estava andando pela Avenida Paulista com a Lúcia, minha irmã, e a gente viu uma chamada de capa da revista Veja: ‘O Brasil é o campeão mundial de cirurgias plásticas’. E a Lúcia mandou bem: ‘Os dois campeonatos mundiais que a gente conquistou recentemente são o de plástica e o de blindagem de carro’. De fato, têm muito em comum essas duas façanhas. Primeiro, plástica e blindagem são trabalhos de funilaria. E dá também pra dizer que são duas manifestações relativas à superfície das coisas, que é um quesito no qual o Brasil sempre esteve entre os primeiros do ranking internacional. Isso vem de longe, afinal, entre os principais mitos fundadores do país, está a conquista afetiva dos índios pelos portugueses, por meio da entrega de um objeto mágico, de reflexão e impenetrabilidade, que tem muito a ver tanto com blindagem quanto com plástica: o espelho.
A plástica e a blindagem são caminhos acelerados e opostos para a felicidade. Na blindagem, a felicidade é perseguida por meio da proteção total contra um possível ato de violência corporal vindo de fora. Já na plástica, a pessoa visa alcançar a felicidade por meio de um ato de violência contra o próprio corpo. Mas não sou daqueles que têm uma reação moral automática nem contra a plástica nem contra a blindagem. Não mesmo. Algumas cirurgias menores podem poupar anos de psicanálise e contribuir decisivamente para melhorar a vida do paciente e do mundo ao seu redor. Tem plástica que hoje em dia não é muito mais que um penteado de cabelo, uma maquiagenzinha 3D. CURTO-CIRCUITO SOCIAL
É uma pena que pouca gente faça plástica para ter uma experiência de mudança de identidade. As pessoas fazem plástica não para parecerem diferentes, mas para ficarem cada vez mais iguais. Mesmo assim, acho que elas têm mais é que fazer. E, indo ainda mais fundo neste meu raciocínio de direita festiva, também defendo quem quer blindar seus carros. Quando se fala com alguém que foi assaltado ou perdeu um ente querido na guerra civil brasileira, é difícil argumentar que a blindagem do carro é um ato de egoísmo. Com raríssimas exceções altruístas, a resposta óbvia é que a gente vive num tempo em que quem pode blinda e quem não pode fica se sacudindo assustado atrás de um vidro temperado. Inegavelmente, esse raciocínio faz sentido, já que a mais antiga das leis, a lei da selva, ainda não foi revogada. Desde que não blinde a alma junto, acho que quem blinda o carro não está cometendo o oitavo pecado capital e tem todo o direito de estar dentro dele, lindo, leve e preso.
Antes que achem que o autor da coluna recebeu o espírito da Hebe Camargo, deixa eu explicar melhor. Acho que blindar carro e até fazer plástica são, sim, atos de egoísmo. Mas de um egoísmo da sociedade, não do indivíduo. É um paradoxo típico da Era da Mídia. Respeitando o próximo, cada indivíduo tem o direito de tirar e colocar o próprio corpo onde bem entender. E tem também o direito de tirar e colocar dentro do próprio corpo aquilo que bem entender. É ridículo querer apontar o dedo moral e caçar bruxas individualmente só porque elas resolveram dar um tapinha no nariz. O problema é que, numa sociedade que se comunica pelos canais instantâneos da mídia, a solução individual tende a se transformar rapidamente num movimento social. E, quando a sociedade opta pela solução individualista, um curto-circuito na convivência é, mais cedo ou mais tarde, inevitável.

PRISÃO PARTICULAR
As pessoas fazem plástica ou blindam carros simplesmente para se adaptarem melhor às regras do jogo da sociedade em que vivem. E faz parte da própria definição de sociedade criar e difundir regras que, às vezes, precisam ser temidas para serem respeitadas. Sempre foi assim. Antigamente, as regras do jogo eram transmitidas por meio de mitos, de boca em boca ou, no máximo, de papel em papel. Havia mais tempo para uma reação. A sociedade contemporânea, que tem a tecnologia da mídia para comunicar as suas regras na velocidade da luz, manda uma mensagem liminar e subliminar bem clara: ‘tem alguém querendo te matar a cada esquina, é melhor se cuidar’ ou ‘tem alguém bem mais bonito que você a cada esquina, é melhor se cuidar’.
Um caminhão de imagens de sexo e morte é despejado diuturnamente na caçamba do espectador. É Eros e Tanatos a granel. A resposta do público tem sido essa ação individual em detrimento de uma reação social que vise, por exemplo, ao relaxamento dos padrões ditatoriais de beleza ou à mobilização por um espaço urbano mais justo e pacífico. Não tem dado muito certo, né? Por meio do terror espalhado pela aceleração midiática, está ficando impossível cumprir as regras sociais. E, se a regra é impossível de ser cumprida, a sensação de prisão torna-se inevitável. Dentro do próprio carro ou dentro do próprio corpo.

PALAVRAS-CHAVE
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